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    Paul Krugman

    Ideologia e investimento

    27/10/2014 16h25

    Os Estados Unidos costumavam ser um país que construía para o futuro. Projetos públicos, do canal Eerie ao sistema rodoviário interestadual, serviam de espinha dorsal ao crescimento econômico.

    Às vezes, esses projetos forneciam incentivos ao setor privado, como por exemplo o uso gratuito de terrenos para fomentar a construção de ferrovias. De qualquer forma, havia apoio amplo a gastos que nos tornassem mais ricos.

    Mas hoje em dia, simplesmente não investimos, mesmo quando a necessidade é óbvia e o momento não poderia ser melhor. E não me diga que o problema é a "disfunção política" ou qualquer outro subterfúgio verbal que sirva para distribuir a culpa equitativamente.

    Nossa incapacidade de investir não é reflexo de que haja algo de errado em "Washington"; na realidade, ela reflete a ideologia destrutiva que tomou o controle do Partido Republicano.

    O retrospecto necessário: mais de sete anos se passaram desde que a bolha da habitação estourou, e, desde então, os Estados Unidos estão sobrecarregados de poupança –mais precisamente, de poupança desejada– sem destino de investimento.

    A captação para compra de casas se recuperou um pouco, mas continua baixa. As grandes empresas vêm registrando fortes lucros, mas relutam em investir diante da demanda fraca de consumo, e por isso acumulam reservas de caixa ou promovem recompra de ações.

    Os bancos detêm quase US$ 2,7 trilhões em excesso de reservas –fundos que eles poderiam emprestar mas optam por manter ociosos.

    E o descompasso entre a poupança desejada e a disposição de investir manteve a economia deprimida. Recorde: seu gasto é minha renda e meu gasto é sua renda, de modo que se todos tentarem gastar menos ao mesmo tempo, a renda de todos cai.

    Existe uma resposta óbvia de política pública a essa situação: investimento público. Temos imensas necessidades de infraestrutura, especialmente nos serviços de água e nos de transportes, e o governo federal pode captar recursos a custo cada vez mais baixo –de fato, os títulos federais com correção monetária vêm apresentando taxa de juros negativa pela maior parte do tempo (no momento a taxa é de apenas 0,4%).

    Por isso, captação para construir estradas, reparar esgotos e outros projetos parece uma solução evidente. Mas o que aconteceu na realidade foi o oposto. Depois de uma breve alta quando o estímulo de Obama entrou em vigor, os gastos com a construção pública despencaram. Por quê?

    De maneira direta, boa parte da queda no investimento público reflete os problemas fiscais dos governos estaduais e municipais, que respondem pela grande maioria do investimento público.

    Esses governos precisam manter seus orçamentos equilibrados, por imposição legal, mas viram queda violenta de arrecadação e algum aumento de despesas, em uma economia deprimida. Por isso, postergaram ou cancelaram muitos projetos de construção para economizar dinheiro.

    Mas isso não precisava ter acontecido. O governo federal poderia facilmente ter fornecido assistência aos Estados para ajudá-los a gastar –de fato, o projeto de lei de estímulo incluía essa forma de assistência, o que é uma das principais razões para que o investimento público tenha crescido por breve período.

    Mas assim que os republicanos tomaram o controle da Câmara, qualquer chance de aumento da verba de infraestrutura desapareceu. Os republicanos, de vez em nunca, falam em ampliar gastos, mas bloquearam todas as iniciativas do governo Obama nesse sentido.

    E a questão é totalmente ideológica, uma hostilidade esmagadora a gastos governamentais de qualquer tipo. Essa hostilidade começou como ataque a programas sociais, especialmente os de assistência aos pobres, mas com o tempo se ampliou a uma oposição a qualquer forma de gasto, não importa o quanto sejam necessários e em que estado esteja a economia.

    Você pode perceber como essa ideologia funciona com base em alguns documentos produzidos pelos republicanos sob a liderança do deputado Paul Ryan, o presidente do Comitê Orçamentário da Câmara.

    Por exemplo, um manifesto de 2011 intitulado "gaste menos, deva menos, promova o crescimento econômico" pedia fortes cortes de gastos mesmo diante de alto desemprego, e descartava como "keynesiana" a ideia de que "reduzir os gastos do governo com infraestrutura reduz o investimento governamental". (Pensei que isso era questão de simples aritmética, mas quem sou eu para saber?).

    Ou leia um editorial do "Wall Street Journal", do mesmo ano, intitulado "os grandes desviadores", asseverando que qualquer dinheiro que o governo gaste desvia recursos para fora do setor privado, que sempre faria uso melhor desses recursos.

    Pouco importa que os modelos econômicos que embasam essas asserções tenham fracassado dramaticamente na prática, ou que as pessoas que dizem essas coisas estejam prevendo inflação descontrolada e uma disparada nas taxas de juros ano após ano, sem que isso se confirme; pessoas como essas não reconsideram suas posições à luz das provas.

    Nem importa o evidente argumento de que o setor privado não quer e não pode prover a maior parte dos tipos de infraestrutura, de estradas locais a sistemas de esgotos; essas distinções são desconsideradas em meio ao cântico de "setor privado bom, governo mau".

    E o resultado, como eu disse, é que os Estados Unidos deram às costas à sua própria história. Precisamos de investimento público; em um momento de taxas de juros muito baixas, teríamos facilmente condição de arcar com o custo. Mas construir? Não.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

    paul krugman

    Prêmio Nobel de Economia (2008), é um dos mais renomados economistas da atualidade. É autor ou editor de 20 livros e tem mais de 200 artigos científicos publicados. Escreve às terças e sábados.

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