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    Paul Krugman

    Morte por erro de digitação

    10/11/2014 10h52

    Meus pais tinham uma casinha com um grande quintal, e minha mãe plantou nele um belo jardim. Em algum momento, porém - não me lembro o motivo -, meu pai decidiu ler a escritura da propriedade, e sofreu um choque. De acordo com o texto, o terreno dos Krugman não tinha formato mais ou menos retangular. Na verdade, era um triângulo com mais de 30 metros de comprimento mas, na base, com apenas um metro de largura.

    Um estudo mais detalhado revelou a causa: a pessoa que redigiu a escritura havia, de alguma maneira, pulado um parágrafo. E o registro municipal de imóveis, é claro, corrigiu o texto. Afinal, teria sido absurdo e cruel privar meus pais da maior parte de seu terreno com base em um erro no texto, já que a intenção de quem havia redigido o documento era perfeitamente clara.

    Mas agora parece possível que a Corte Suprema dos Estados Unidos venha a privar milhões de norte-americanos de seus planos de saúde por conta de um erro de digitação igualmente óbvio. Se você acredita que essa possibilidade tenha algo a ver com raciocínio legal sério, e não com partidarismo escancarado, ei, tenho um terreno comprido e fininho que você talvez deseje comprar...

    Na semana passada, a Corte Suprema chocou muitos observadores ao declarar que estava disposta a considerar um caso que alega que a redação de uma cláusula da Lei de Acesso a Saúde estipula limites drásticos aos subsídios para norte-americanos capazes de bancar planos de saúde.

    É uma alegação ridícula: não só está claro, com base em todo o conteúdo da lei, que não existia intenção de estabelecer esses limites como é possível perguntar às pessoas que redigiram o projeto de lei qual era a intenção delas, e claramente não era a que os queixosos alegam. Mas o fato de que o processo seja ridículo não é garantia de que não sairá vitorioso - não em um ambiente no qual muitos juízes republicanos deixaram claro que a lealdade partidária vale mais que o respeito ao Estado de Direito.

    Para compreender a questão, você precisa entender a estrutura da reforma da saúde. A Lei de Acesso à Saúde tenta estabelecer cobertura de saúde mais ou menos universal por meio de uma tríade de políticas, todas as quais são necessárias para garantir que o sistema funcione.

    Primeiro, as operadoras de planos de saúde não podem mais discriminar os norte-americanos por seus históricos médicos, e por isso não podem negar cobertura ou impor preços exorbitantes a pessoas com problemas médicos preexistentes. Segundo, todo mundo é obrigado a ter um plano de saúde, para garantir que os saudáveis não esperem adoecer antes de aderir.

    Por fim, há subsídios para os norte-americanos de renda mais baixa, a fim de garantir que possam bancar o plano de saúde que têm a obrigação de adquirir.

    É bom comentar que o sistema parece estar funcionando bastante bem; o número de inscrições está acima do esperado, os preços dos planos de saúde ficaram abaixo do previsto e mais operadoras estão acorrendo ao mercado.

    Qual é o problema, então? Para receber subsídios, os norte-americanos precisam adquirir seus planos por meio de mercados operados pelo governo. Esses mercados tomam duas formas. Muitos Estados optaram por operar mercados próprios, como o Covered California e o Kynect, do Kentucky.

    Outros Estados, porém - muitos deles governados pelo Partido Republicano -, se recusaram assumir papel ativo no fornecimento de planos de saúde às pessoas desprovidas de cobertura, e por isso optaram por mercados operados pelo governo federal (que estão funcionando bem agora que os problemas iniciais de software foram resolvidos).

    Mas se você estudar a linguagem específica usada para autorizar os subsídios, ela pode ser interpretada - por um leitor incrivelmente hostil - como significando que os subsídios só estarão disponíveis para os norte-americanos que utilizarem mercados estaduais de planos de saúde, não mercados federais.

    Como eu já disse, tudo mais na lei deixa claro que não era a intenção dos redatores, e de qualquer forma é possível perguntar diretamente a eles, e a resposta será a de que essa interpretação só é possível por conta de descuido na redação. Além disso, caso o processo resulte em vitória, as consequências seriam grotescas.

    Estados como a Califórnia, que operam mercados próprios, não sofreriam mudanças, mas em lugares como Nova Jersey, cujos políticos republicanos recusaram assumir um papel no novo sistema de saúde, as pessoas saudáveis abandonariam o sistema e a reforma da saúde entraria em uma espiral da morte. (E já que muita gente perderia cobertura crucial e salvadora, as mortes não seriam apenas metafóricas.)

    Os Estados poderiam evitar essa espiral da morte estabelecendo mercados de planos de saúde - o que poderia se restringir a criar um site com links para o mercado federal. Mas como chegamos a esse ponto?
    No passado, um processo como esse seria derrubado em meio a risadas. Mas ele terminou acatado em instâncias inferiores, em decisões claramente orientadas em linha partidária, e a disposição dos juízes da Corte Suprema de considerá-lo é um mau presságio.

    Assim, sejamos claros quanto ao que está acontecendo aqui: os juízes que apoiam esse cruel absurdo não são idiotas; sabem o que estão fazendo. Mas são corruptos, e se dispõem a perverter a lei a fim de servir aos seus mestres políticos. E o que descobriremos nos próximos meses é até que ponto chega a corrupção.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

    paul krugman

    Prêmio Nobel de Economia (2008), é um dos mais renomados economistas da atualidade. É autor ou editor de 20 livros e tem mais de 200 artigos científicos publicados. Escreve às terças e sábados.

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