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    Paul Krugman

    A longa sombra da escravidão

    22/06/2015 12h47

    Os Estados Unidos são uma nação muito menos racista do que costumavam ser, e não estou falando apenas sobre o fato ainda notável de um afro-americano ocupar a Casa Branca. O racismo cru institucional que prevalecia antes do movimento dos direitos civis até Jim Crow se foi, embora uma discriminação sutil persista.

    Atitudes individuais mudaram também dramaticamente em alguns casos. Por exemplo, recentemente, na década de 1980, metade dos americanos era contra o casamento inter-racial, posição hoje apenas de uma pequena minoria.

    No entanto, o ódio racial é ainda uma força potente na nossa sociedade, como acabamos de ser lembrados para nosso horror. E sinto muito em dizer isso, mas a divisão racial ainda é uma característica definidora da nossa economia política, razão pela qual os EUA são únicos entre as nações avançadas no tratamento severo dos menos afortunados e na disposição a tolerar o sofrimento desnecessário entre os seus cidadãos.

    Claro, dizer isso traz negações raivosas de muitos conservadores, então me deixe tentar ser legal e cuidadoso aqui e citar algumas das evidências esmagadoras da centralidade da raça em nossa política nacional.
    Minha compreensão do papel da raça na excepcionalidade dos EUA foi, em grande parte, moldada por dois artigos acadêmicos.

    O primeiro, do cientista político Larry Bartels, analisa o movimento da classe trabalhadora branca para longe dos Democratas, que ficou famoso em "Qual é o problema com o Kansas?", de Thomas Frank. Frank defende que a classe operária branca estava sendo induzida a votar contra seus próprios interesses pela exploração de questões culturais pela direita.

    No entanto, Bartels mostra que o movimento da classe trabalhadora contra os democratas não foi um fenômeno nacional –foi inteiramente restrito ao sul, onde os brancos viraram esmagadoramente republicanos após a aprovação da Lei dos Direitos Civis e após a chamada estratégia sulista, de Richard Nixon.

    Esta mudança de partido, por sua vez, foi o que levou à direita a política americana depois de 1980. A raça tornou o reaganismo possível. E até hoje, os brancos do sul votam esmagadoramente nos republicanos, da ordem de 85% ou mesmo 90% no extremo sul.

    O segundo artigo, dos economistas Alberto Alesina, Edward Glaeser e Bruce Sacerdote, chama-se "Por que os Estados Unidos não têm um estado de bem-estar estilo europeu?".

    Os autores –que não são, por sinal, especialmente liberais– exploram diversas hipóteses, mas concluem que a raça é central, porque nos EUA, programas de ajuda aos necessitados são muito frequentemente vistos como programas de ajuda "Àquelas Pessoas": "Nos Estados Unidos, a raça é o único indicador mais importante de apoio ao bem-estar. As relações raciais problemáticas do país são claramente uma das principais razões para a ausência de um Estado de bem-estar americano."

    Agora, esse papel foi publicado em 2001, e você pode se perguntar se as coisas mudaram desde então. Infelizmente, a resposta é não, como você pode ver olhando como os Estados estão implementando –ou se recusando a implementar– o Obamacare.

    Para aqueles que não estão acompanhando o assunto, em 2012, a Suprema Corte deu a opção aos Estados, se assim quisessem, de bloquear a expansão do Medicaid pela lei "Affordable Care", uma parte fundamental do plano para fornecer seguro saúde para americanos de baixa renda. Mas por que algum Estado exerceria tal opção?

    Afinal de contas, estava sendo oferecido um programa financiado federal que iria dar grandes benefícios a milhões de seus cidadãos, despejar bilhões em suas economias, e ajudar a apoiar os profissionais da saúde. Quem recusaria uma oferta como essa?

    A resposta é: 22 Estados, naquele momento, embora alguns possam mudar de ideia. E o que tais Estados têm em comum? Principalmente, uma história de posse de escravos: apenas um ex-membro da Confederação expandiu o Medicaid, e ainda que alguns Estados do norte façam também parte do movimento, mais de 80% da população que recusou o Medicaid mora em Estados que praticavam a escravidão antes a Guerra Civil.

    E não é apenas a reforma da saúde: uma história de escravidão é um forte indicador de tudo, desde o controle de armas (ou melhor, a sua ausência) aos salários mínimos baixos e à hostilidade com os sindicatos e com a política fiscal. Então, será sempre assim? Os Estados Unidos estão condenados a viver para sempre politicamente na sombra da escravidão?

    Gostaria de pensar que não. Por um lado, o país está crescendo mais etnicamente diverso, e a velha polaridade preto-branco está lentamente ficando ultrapassada. Por outro, como eu disse, nós realmente nos tornamos muito menos racistas, e, em geral uma sociedade muito mais tolerante em várias frentes.

    Ao longo do tempo, devemos esperar ver o declínio da influência da política conhecida como "dog-whistle" (mensagens cifradas que são compreendidas somente por seu público-alvo e não por toda a população).

    Mas isso não aconteceu ainda. De vez em quando você ouvir um coro de vozes declarando que raça não é mais um problema nos EUA. Isso é uma ilusão; ainda estamos assombrados pelo pecado original da nossa nação.

    Tradução de MARIA PAULA AUTRAN

    paul krugman

    Prêmio Nobel de Economia (2008), é um dos mais renomados economistas da atualidade. É autor ou editor de 20 livros e tem mais de 200 artigos científicos publicados. Escreve às terças e sábados.

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