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    Paul Krugman

    Como os EUA se perderam

    15/02/2016 11h42

    Houve um tempo em que a morte de um juiz da Suprema Corte não teria trazido os Estados Unidos ao limite de uma crise constitucional. Mas aquele era um país diferente, com um Partido Republicano muito diferente. No país de hoje, com o Partido Republicano de hoje, o falecimento de Antonin Scalia abriu as portas para o caos.

    Em princípio, a perda de um juiz deveria causar no máximo uma perturbação leve no cenário nacional. Afinal de contas, o tribunal supostamente está acima da política. Assim, quando uma vaga aparece, o presidente deve simplesmente indicar, e o Senado, aprovar alguém altamente qualificado e respeitado por todos.

    Na realidade, é claro, as coisas nunca foram tão simples. Juízes sempre tiveram inclinações políticas, e o processo de nomeação e aprovação tem sido muitas vezes controverso. Ainda assim, não havia nada como a situação que enfrentamos agora, em que os republicanos declararam, mais ou menos por unanimidade, que o presidente Barack Obama não tem o direito nem mesmo de nomear um substituto para Scalia – e não, o fato de que Obama vai sair logo não legitima isso. (O juiz Anthony Kennedy foi nomeado durante o último ano de Ronald Reagan).

    As consequências de uma vacância no tribunal tampouco foram tão preocupantes no passado como são agora. Como todo mundo está apontado, sem Scalia, os juízes estão igualmente divididos entre os nomeados republicanos e democratas – o que provavelmente significa um tribunal dividido em muitas questões.

    E não há como dizer quanto tempo essa situação pode durar. Se um democrata levar a Casa Branca, mas os republicanos tiverem o controle do Senado, quando, se é que você acha que isso vai acontecer, os republicanos estariam dispostos a confirmar qualquer nome que o novo presidente indicasse?

    Como chegamos a esta confusão?

    De certa forma, a resposta é a divisão partidária cada vez maior. A polarização aumentou consideravelmente em todos os aspectos da política americana, desde votações no Congresso até a opinião pública, com um aumento especialmente dramático no "partidarismo negativo"– a desconfiança e desdém em relação ao outro lado. E a Suprema Corte não é diferente. Ainda nos anos 1970, o tribunal teve vários membros considerados decisivos, cujos votos nem sempre eram previsíveis a partir de posições partidárias, mas aquele centro agora consiste apenas em Kennedy, e apenas em uma parte do tempo.

    Mas simplesmente apontar o aumento do partidarismo como a fonte da nossa crise, embora não esteja exatamente errado, pode ser profundamente enganador. Primeiro, ao condenarmos o partidarismo, pode parecer que estamos apenas falando de seus maus modos, quando estamos realmente olhando para as enormes diferenças quanto ao conteúdo. Em segundo lugar, é muito importante não se envolver em uma falsa simetria: apenas um dos nossos dois principais partidos políticos chegou ao fundo do poço.

    Na divisão substancial entre as partes: ainda encontro pessoas à esquerda (embora não à direita) que afirmam que não há grande diferença entre republicanos e democratas, ou, na verdade, democratas do "establishment". Mas isso é absurdo. Mesmo que você esteja decepcionado com o que Obama realizou, ele aumentou substancialmente os impostos sobre os ricos e expandiu dramaticamente a rede de seguridade social; apertou significativamente a regulação financeira; incentivou e supervisionou um surto de energia renovável; avançou na diplomacia com o Irã.

    Qualquer republicano iria desfazer tudo isso e se mover bruscamente na direção oposta. Se é que ele existe, o consenso entre os candidatos presidenciais parece ser que George W. Bush não reduziu os impostos sobre os ricos o suficiente e deveria ter feito mais uso de tortura.

    Quando falamos de partidarismo, então, não estamos falando de equipes arbitrárias, mas de uma profunda divisão de valores e políticas. Como alguém pode não ser "partidário", no sentido de preferir uma dessas visões?

    E cabe a você decidir qual a versão que prefere. Então, por que eu digo que apenas um dos partidos foi ao fundo do poço?

    Uma resposta é: compare o debate democrático da semana passada com o debate republicano de sábado. Preciso dizer mais?

    Além disso, há enormes diferenças de táticas e atitudes. Os democratas nunca tentaram extorquir concessões, ameaçando cortar os empréstimos dos EUA e criar uma crise financeira; os republicanos, sim. Os democratas não costumam negar a legitimidade dos presidentes do outro partido. Os republicanos o fizeram tanto com Bill Clinton quanto com Obama. O novo bloqueio do Supremo Tribunal por parte dos republicanos é, fundamentalmente, uma linha direta de descendência dos dias em que eles costumavam chamar Clinton de "o seu presidente".

    Então, como isso pode ser resolvido? Uma resposta poderia ser uma varredura republicana – embora você tenha que perguntar, será que os homens naquele palco, no sábado, transmitem a impressão de um partido que está pronto para governar? Ou talvez você acredite – baseado em provas das quais não estou ciente – que uma ascensão populista à esquerda está pronta para acontecer a qualquer momento. Mas, se um governo dividido persistir, é muito difícil ver como se pode evitar o caos crescente.

    Talvez todos nós devêssemos começar a usar bonés de beisebol com a frase: "Torne os EUA governáveis novamente."

    Tradução de MARIA PAULA AUTRAN

    paul krugman

    Prêmio Nobel de Economia (2008), é um dos mais renomados economistas da atualidade. É autor ou editor de 20 livros e tem mais de 200 artigos científicos publicados. Escreve às terças e sábados.

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