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    Paul Krugman

    A má decisão judicial que ameaça parte da reforma financeira nos EUA

    11/04/2016 16h29

    Será que Snoopy acaba de nos condenar a uma nova crise financeira severa? Infelizmente, essa é uma possibilidade real, graças a uma má decisão judicial que ameaça parte crucial da reforma financeira.

    O retrospecto: quando a catástrofe se abateu sobre o conturbado sistema financeiro dos Estados Unidos, em setembro de 2008, a causa próxima era o colapso iminente de três companhias –nenhuma das quais um banco no senso normal da palavra, ou seja, uma instituição que aceita depósitos e faz empréstimos com esses recursos. Uma delas, é claro, era o Lehman Brothers; as duas outras eram o fundo The Reserve e a seguradora American International Group, ou AIG.

    O Lehman pediu concordata, enquanto o The Reserve, que perdeu dinheiro com o Lehman, congelou as contas de seus clientes e mais tarde se viu sujeito à liquidação forçada. A AIG foi resgatada por uma linha de crédito de US$ 85 bilhões oferecida pelo Federal Reserve (Fed, o banco central dos Estados Unidos), que, em troca, ficou com 80% das ações da companhia.

    O episódio demonstrou que a regulamentação financeira tradicional, que depende de fiscalizar bancos que operam contas correntes, é inadequada para o mundo moderno. Não é só porque qualquer um que tome dinheiro emprestado em curto prazo para financiar investimentos de risco –aquilo que o Lehman fez– cria exatamente o mesmo tipo de perigo que um banco convencional criaria. Também há um grau elevado de interconexão: a AIG não era banco, mas estava vendendo garantias para ativos financeiros, e o medo de que não fosse capaz de honrar essas garantias ameaçou derrubar todos os dominós economia afora.

    Oh, e, além disso, o episódio também demonstrou que fazer da dissolução dos grandes bancos o grande objetivo de toda reforma não é resposta.

    O que precisamos é de regulamentação que limite os riscos de instituições não bancárias –e é isso que a reforma financeira de 2010 tenta fazer. A maneira pela qual o faz é permitir que as autoridades regulatórias designem algumas empresas como "sistemicamente importantes", o que significa que, como no caso da AIG, sua quebra ou perspectiva de quebra poderia ameaçar a estabilidade financeira. Quando uma instituição recebe essa designação, ela fica sujeita a fiscalização e exigências mais rigorosas.

    O que determina se uma empresa é sistemicamente importante? Não existem regras explícitas –e nem podem existir, porque, se fosse esse o caso, os advogados das grandes companhias encontrariam maneiras de contorná-las. Em lugar disso, a determinação é uma questão de julgamento. Mas os gigantes financeiros não gostam de ser regulamentados e estão recorrendo à Justiça para questionar esses julgamentos.

    O que nos conduz a Snoopy, que há muito tempo, por motivos que não compreendo, vem servindo somo símbolo para a gigante dos seguros MetLife.

    No final de 2014, as autoridades regulatórias designaram a MetLife, cujos negócios vão muito além dos seguros de vida pessoais, como instituição financeira sistemicamente importante. Outras empresas que receberam essa designação tentaram escapar a ela mudando seus modelos de negócios. A General Electric, por exemplo, cujos negócios haviam se tornado mais financeiros que industriais, vendeu muitas de suas unidades de finanças. Mas a MetLife foi à Justiça. E conquistou uma decisão favorável da juíza Rosemary Collyer, da primeira instância da justiça federal dos Estados Unidos.

    Foi uma decisão peculiar. Collyer se queixou repetidamente de que as autoridades regulatórias não haviam realizado uma análise de custo/benefício, algo que a lei não dispõe que elas devam fazer, e por bons motivos.

    Crises financeiras, afinal, são eventos raros, porém drásticos; é pouco razoável esperar que os fiscais determinem com antecedência qual é a probabilidade da próxima crise, ou de que maneira ela poderia se desenrolar, antes de imporem padrões prudenciais. Exigir que as autoridades quantifiquem o que não se pode quantificar estabeleceria, na prática, um forte pressuposto contra qualquer forma de medida de proteção.

    É claro que é isso que as companhias financeiras desejam. Os conservadores gostam de fingir que o rótulo "sistemicamente importante" é, na verdade, um privilégio, uma garantia de que empresas serão resgatadas. Em 2012, Mitt Romney descreveu essa parte da reforma como "um beijo para os bancos de Nova York" (eles jamais perdem uma oportunidade de desdenhar desta cidade, não é?), uma "enorme vantagem para essas empresas". No entanto, estranhamente, as empresas estão fazendo o que podem para evitar essa "vantagem" –e as ações da MetLife subiram acentuadamente quando a decisão da juíza foi anunciada.

    O governo federal recorrerá da decisão no caso MetLife, mas, mesmo que vença, o caso pode abrir os portões a uma enxurrada de contestações à reforma financeira. E é nesse sentido que Snoopy pode estar nos colocando no caminho de um futuro desastre.

    Não é necessário que isso aconteça. Como para tantas outras coisas, a eleição deste ano é crucial. Um democrata na Casa Branca agiria de acordo com o espírito e não só com a letra da reforma e apontaria juízes simpáticos à causa. Um republicano, qualquer republicano, faria todos os esforços para solapar a reforma, ainda que não se prove capaz de repeli-la explicitamente.

    Quero deixar claro: não estou afirmando que a reforma financeira de 2010 foi suficiente. A próxima crise pode vir mesmo que ela permaneça intacta. Mas a probabilidade de uma crise será muito mais alta se ela cair.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

    paul krugman

    Prêmio Nobel de Economia (2008), é um dos mais renomados economistas da atualidade. É autor ou editor de 20 livros e tem mais de 200 artigos científicos publicados. Escreve às terças e sábados.

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