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    Paul Krugman

    Indignação com o que acontece nos Estados Unidos é justificada e essencial

    27/02/2017 13h41

    Você está zangado por o movimento nacionalista branco ter tomado o controle do governo dos Estados Unidos? Se sim, pode ter certeza de que não está sozinho. As primeiras semanas do governo Trump foram marcadas por imensos protestos, multidões furiosas em reuniões com congressistas de diversos Estados, boicotes de consumidores a empresas vistas como aliadas de Trump. E o Partido Democrata, respondendo à pressão de sua base, adotou uma linha dura no que tange a cooperar com o novo regime.

    Mas será que isso é sensato? Inevitavelmente, começarão a surgir vozes pedindo calma —pedindo que esperemos para ver, que tentemos ser construtivos, que busquemos aproximação com os partidários de Trump, que encontremos terreno comum para um compromisso.

    Diga não a esses apelos.

    A indignação diante do que está acontecendo nos Estados Unidos não só é completamente justificada como essencial. Ela pode, de fato, ser a última chance de salvar a nossa democracia.

    Mesmo em termos estreitamente partidários, os democratas fariam bem em continuar ouvindo o que a base do partido tem a dizer. Quem quer que afirme que pode ser prejudicado politicamente caso venha a ser visto como obstrutivo deve ter passado as duas últimas décadas dormindo.

    Os democratas foram recompensados quando optaram por cooperar com George W. Bush? Os republicanos foram punidos pela tática de terra arrasada que adotaram em sua oposição ao presidente Barack Obama? Fala sério!

    É verdade que os eleitores brancos de classe trabalhadora, o núcleo básico do eleitorado de Donald Trump, não parecem se incomodar com a torrente de escândalos. Não se voltarão contra o presidente até que percebam que suas promessas de trazer empregos de volta e proteger seus serviços de saúde eram mentiras.

    Mas lembre-se: ele foi derrotado no voto popular, e teria sido derrotado no colégio eleitoral se número significativo de eleitores dotados de educação superior não tivessem sido iludidos pela mídia e pelo FBI (Polícia Federal americana) e levados a crer que Hillary Clinton de alguma maneira era ainda menos ética que seu rival. Esses eleitores estão despertando para a realidade, agora, e é preciso que continuem de olhos abertos.

    A indignação pode ser especialmente significativa para as eleições legislativas e estaduais de 2018. Os distritos que determinarão se os democratas poderão retomar o controle da Câmara dos Deputados no ano que vem abrigam tanto eleitores com nível de educação relativamente alto quanto grandes populações hispânicas, dois grupos que certamente se incomodarão com as prevaricações de Trump, mesmo que a classe trabalhadora branca ainda não o faça.

    Mas existe uma questão maior que a política partidária em jogo aqui, por mais importante que a política partidária seja, dada a determinação do Congresso republicano de acobertar tudo que Trump fizer. Pois a democracia mesma deve ser considerada sob ameaça, e a indignação do povo pode se provar nossa última linha de defesa.

    Trump claramente aspira a ser um autocrata, e os demais republicanos estão dispostos a permitir que isso aconteça. Alguém duvida disso? E,. diante dessa realidade, é completamente razoável que nos preocupemos com a possibilidade de que os Estados Unidos sigam o caminho de outros países, a exemplo da Hungria, que continuam a ser democracias no papel mas na prática se tornaram Estados autoritários.

    Como isso acontece? Uma parte crucial da história é que a autocracia emergente emprega o poder do Estado para intimidar e cooptar a sociedade civil - instituições que não fazem parte do governo propriamente dito. A mídia é intimidada e subornada para que se torne um órgão de propaganda para a camarilha governante. Empresas são pressionadas a recompensar os amigos da camarilha e a punir seus inimigos. Figuras públicas independentes são forçadas a colaborar ou a se calarem. A situação parece familiar?

    Mas uma população indignada pode e deve reagir, usando o poder de sua desaprovação para contrabalançar a influência de um governo corrompido.

    Isso significa apoiar as organizações noticiosas que fazem seu trabalho e rejeitar aquelas que operam como agentes do regime. Significa escolher como fornecedores empresas que defendem os nossos valores, e não aquelas que se disponham a colaborar com sua subversão. Significa deixar claro para as figuras públicas —mesmo se elas ocuparem postos não políticos —que as pessoas se interessam pelas posições que elas adotam, ou deixam de adotar. Pois não vivemos um momento normal, e coisas que seriam aceitáveis em situações menos perigosas hoje deixam de sê-lo.

    Por exemplo, não é aceitável que jornais publiquem artigos citando os dois lados como se suas posições tivessem igual valor, porque isso ajuda a ocultar as mentiras do governo. E é ainda menos aceitável que eles publiquem artigos elogiosos sobre os aliados de Trump.

    Não é aceitável que empresas permitam a Trump posar para fotos que o ajudarão a assumir o crédito pela criação de empregos com os quais ele não têm qualquer relação —ou que líderes empresariais sirvam em conselhos "consultivos" que na verdade servem apenas como mais uma oportunidade para que o presidente pose em sua companhia.

    Não é aceitável nem mesmo jogar golfe com o presidente, afirmando que isso é uma demonstração de respeito pelo cargo, não pelo homem. Lamento, mas quando o posto é ocupado por um homem que está tentando solapar a constituição, fazer qualquer coisa que o ajude a parecer normal e lhe confira respeitabilidade é um ato político.

    Estou certo de que muitos leitores prefeririam viver em um país no qual porção maior da vida pudesse ser separada da política. Eu sinto a mesma coisa! Mas a sociedade civil está sob ataque por forças políticas, e defendê-la, portanto, necessariamente se torna um ato político. E a indignação justificada deve servir como combustível para essa defesa. Quando nem o presidente e nem seus aliados no Congresso demonstram qualquer sinal de respeito aos valores básicos dos Estados Unidos, um público indignado e disposto a vigiar o comportamento de todos é tudo que nos resta.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

    paul krugman

    Prêmio Nobel de Economia (2008), é um dos mais renomados economistas da atualidade. É autor ou editor de 20 livros e tem mais de 200 artigos científicos publicados. Escreve às terças e sábados.

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