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    Paul Krugman

    Obamacare, embora ninguém acredite, é uma lei bem pensada

    10/07/2017 11h38

    Mark RALSTON/AFP PHOTO
    Meninas participam de protesto a favor do Obamacare em Los Angeles, Califórnia
    Meninas participam de protesto a favor do Obamacare em Los Angeles, Califórnia

    Será que 50 senadores republicanos se disporão a causar sérios danos aos seus eleitores em nome da lealdade partidária? Não faço ideia.

    Mas o momento parece bom para uma revisão dos motivos para que os republicanos não consigam propor uma alternativa não desastrosa ao Obamacare. Isso não acontece porque eles são estúpidos (ainda que tenham se tornado espantosamente anti-intelectuais). O motivo do problema é que não se pode alterar qualquer elemento importante da Lei de Acesso à Saúde da era Obama sem destruir a coisa toda.

    Suponha que você deseje propiciar cobertura de saúde a todos, o que inclui pessoas com problemas de saúde pré-existentes. A maior parte dos economistas especializados em saúde que conheço adoraria ver um sistema de cobertura por fonte única —Medicare para todos. Mas uma proposta como essa não seria realista no momento.

    Para começar, o setor de planos de saúde não aceitaria com facilidade sua eliminação, e dispõe de forte influência. E mudar o sistema de forma a bancar toda cobertura por meio de um plano federal de saúde requereria um grande aumento de impostos. Deixar de pagar por um plano de saúde representaria benefício maior que a carga gerada pelo aumento de impostos, para a maioria das pessoas, mas esse seria um argumento difícil de defender em uma campanha eleitoral.

    Além disso, a maioria dos americanos com idade inferior a 65 anos conta com cobertura de saúde fornecida por seus empregadores, e essa cobertura é considerada como em geral satisfatória. Qualquer proposta de substituir essa cobertura por alguma outra coisa deixaria os beneficiários compreensivelmente nervosos, não importa o quanto fossem reassegurados, honestamente, de que o sistema substituto seria melhor.

    Assim, a Lei de Acesso à Saúde optou pelo gradualismo —o banquinho de três pernas.

    O primeiro passo é o requisito de que as empresas de plano de saúde ofereçam os mesmos planos, aos mesmos preços, a todos, independentemente do histórico de saúde do beneficiário. Isso resolve a questão dos problemas de saúde preexistentes. Mas, sem outras medidas, o processo resultaria em uma "espiral da morte": as pessoas saudáveis esperariam para aderir só quando adoecessem, de modo que as adesões viriam principalmente de pessoas já doentes, o que elevaria o custo dos planos, forçando mais pessoas saudáveis a abandoná-los, e assim por diante.

    Assim, a regulamentação dos seguros de saúde tinha de vir acompanhada por uma regra de cobertura pessoal compulsória —a exigência de que cada pessoa, mesmo que saudável, assinasse com um plano de saúde. E os planos de saúde teriam de atender a padrões mínimos. Pagar por um plano de saúde barato, que praticamente não cubra coisa alguma, é o equivalente funcional de não ter plano de saúde.

    Mas e se as pessoas não tivessem como pagar por um plano de saúde? A terceira perna do banquinho era representada por um subsídio aos beneficiários de baixa renda. Para as pessoas de renda mais baixa, o subsídio é equivalente a 100% do custo do plano, e toma a forma de uma expansão no plano de saúde federal Medicaid.

    O ponto-chave é que as três pernas do banquinho são necessárias. Se qualquer uma delas for removida, o programa não funciona.

    Isso significa que ele funciona, se as três pernas estiverem presentes? Sim.

    Para compreender o que aconteceu com a Lei de Acesso à Saúde até agora, é preciso compreender que, na forma pela qual foi redigida (e interpretada pela Suprema Corte), o funcionamento da lei depende de muita cooperação dos governos estaduais. E, nos casos em que os Estados realmente cooperaram, expandindo o Medicaid, operando mercados de planos de saúde próprios e promovendo tanto a inscrição dos beneficiários quanto a concorrência entre as empresas de saúde, o sistema funcionou muito bem.

    Compare, por exemplo, a experiência do Estado do Kentucky à do vizinho Tennessee. Em 2013, antes da plena implementação da Lei de Acesso à Saúde, o Tennessee contava com uma proporção ligeiramente inferior de habitantes desprovidos de planos de saúde, 13% ante 14% para o Kentucky. Mas em 2015, o Kentucky, que implementou plenamente a lei, havia reduzido a apenas 6% sua proporção de pessoas desprovidas de planos de saúde, ante 11% no Tennessee.

    Ou considere o problema de condados nos quais apenas uma (ou nenhuma) operadora de planos de saúde opera, o que significa ausência de concorrência. Como aponta um estudo recente, esse é um problema que se restringe apenas aos Estados governados pelos republicanos. Nos Estados com governadores republicanos, 21% da população vive em condados que enfrentam essa situação; nos Estados governados por democratas, o percentual é de menos de 2%.

    Assim, o Obamacare, embora ninguém acredite, é uma lei bem pensada, que funciona nos Estados que desejam que ela funcione. Poderia e deveria funcionar melhor, mas os republicanos não demonstraram interesse nisso. As ideias deles giram em torno de serrar uma ou mais das pernas do banquinho.

    Primeiro, estão determinados a revogar a cobertura individual compulsória, que é impopular junto às pessoas saudáveis mas essencial para fazer com que o sistema funcione para as pessoas que precisam dele.

    Segundo, estão determinados a cortar subsídios - o que inclui cortes selvagens de verbas do Medicaid —a fim de liberar dinheiro que possa ser usado para reduzir os impostos dos ricos. O resultado seria um aumento drástico nos preços dos planos de saúde, para a maioria das famílias.

    Por fim, estamos agora ouvindo muito sobre a emenda Cruz, que permitiria que as empresas de planos de saúde oferecessem planos mínimos, com baixa cobertura e franquia elevada. Esses planos seriam inúteis para as pessoas com problemas de saúde preexistentes, que se veriam segregadas a um mercado de planos de alto preço - o que significa, na prática, arrancar a terceira perna do banquinho.

    Com isso, que partes de seu plano os republicanos precisariam abandonar a fim de evitar grande aumento no número de pessoas desprovidas de cobertura de saúde? A resposta é: todas elas.
    Depois de tantos anos de ataques ao Obamacare, os republicanos não têm ideia de como substitui-lo por algo melhor. Ou melhor: eles simplesmente não têm ideias.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

    paul krugman

    Prêmio Nobel de Economia (2008), é um dos mais renomados economistas da atualidade. É autor ou editor de 20 livros e tem mais de 200 artigos científicos publicados. Escreve às terças e sábados.

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