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    Paul Krugman

    Salto republicano no sistema de saúde nos EUA é conhecido —e horripilante

    17/07/2017 11h33

    Yuri Gripas/Reuters
    Manifestantes protestam em frente ao Capitólio, em Washington, durante votação da lei que substitui a reforma da saúde 'Obamacare
    Manifestantes protestam em frente ao Capitólio, em Washington, durante votação da lei da saúde

    Em algum momento dos próximos dias, o Serviço Orçamentário do Congresso americano divulgará sua análise sobre a mais recente versão do plano republicano para a reforma do setor de saúde.

    O senador Mitch McConnell está fazendo tudo que pode para evitar a publicação de uma análise completa sobre a cláusula Cruz, que permitiria que as operadoras de planos de saúde discriminassem pessoas com problemas de saúde preexistentes. Mesmo assim, todo mundo espera um prognóstico sombrio.

    Como resultado, assessores da Casa Branca já começaram a atacar a credibilidade do chamado CBO (na sigla em inglês), anunciando com antecedência que, não importa o que a avaliação diga, ela será uma "notícia falsa". Assim, por que deveríamos acreditar no CBO e não no governo Trump? Por muitos motivos, e vou enumerá-los.

    Para começar, a Casa Branca de Trump já estabeleceu um histórico de mentiras constantes e estrondosas sobre o sistema de saúde, em escala que, em minha avaliação, não tem precedentes na história moderna. Alguns dias atrás, por exemplo, o vice-presidente Mike Pence fez a afirmação, completamente falsa, de que a expansão do programa federal de saúde Medicaid no Estado do Ohio havia resultado em corte na assistência aos deficientes físicos —uma mentira que o governo do Estado já refutou.

    No domingo, Tom Price, secretário da Saúde e Serviços Humanos, afirmou que o projeto de lei que está tramitando no Senado propiciaria cobertura a mais pessoas que a lei atualmente em vigor —outra mentira escandalosa. (Não se pode cortar centenas de bilhões de dólares nas verbas do Medicaid e nos subsídios aos planos de saúde dos americanos mais pobres e imaginar que a cobertura vá crescer!)

    O ponto é que quanto a essa questão (e quanto a outras, evidentemente), o governo Trump e seus aliados têm credibilidade negativa. Caso digam alguma coisa, a primeira coisa a supor deve ser que estão mentindo.

    Em segundo lugar, o CBO dificilmente está sozinho em sua avaliação negativa dos planos republicanos para a saúde. Na verdade, praticamente todas as organizações informadas sobre a questão chegaram a conclusões semelhantes. Em uma carta conjunta, as duas principais organizações setoriais das operadoras de plano de saúde criticaram a cláusula Cruz como "simplesmente impossível de administrar". A Academia Americana de Atuários disse basicamente a mesma coisa. A AARP, a maior organização nacional de aposentados, reprovou o projeto de lei, e a Associação Médica Americana também.

    Terceiro, ao contrário do que afirma a desinformação espalhada pela Casa Branca, o CBO na verdade fez um trabalho decente ao prever os efeitos da Lei de Acesso à Saúde aprovada no governo Obama, se levarmos em conta que ela representava um salto para o desconhecido. Naquele momento, tínhamos muito pouca experiência sobre como funcionaria o sistema estabelecido pela lei.

    É verdade que o CBO superestimou o número de pessoas que adquiririam planos de saúde nos mercados criados pela lei, mas isso aconteceu em parte porque superestimou o número de empregadores que deixariam de oferecer planos de saúde, levando seus trabalhadores a recorrer aos novos mercados. Os avanços gerais em termos de cobertura se enquadraram razoavelmente bem às projeções do CBO —especialmente nos Estados que expandiram o Medicaid e fizeram o melhor que podiam para garantir que a nova lei funcionasse.

    Por fim —e esse me parece o argumento mais convincente—, prever os efeitos da destruição da Lei de Acesso à Saúde é muito mais fácil do que prever suas consequências quando ela foi adotada, porque o que o projeto de lei do Senado faria, na prática, seria nos devolver aos maus dias do passado. Ou, para expressar a questão de outra maneira, o que McConnell e o senador Ted Cruz estão vendendo é um gigantesco salto rumo ao conhecido, nos reconduzindo a um sistema cujas falhas são todas muito familiares, se levarmos em conta a experiência recente.

    Afinal, antes do Obamacare, a maioria dos Estados tinha mercados de planos de saúde mais ou menos livres de regulamentação, semelhantes aos que o projeto do Senado criaria. Muitos desses Estados também operavam versões sumárias e mal financiadas do Medicaid, e seria esse o efeito dos brutais cortes de verbas para o Medicaid que o projeto republicano propõe.

    Assim, embora projeções numéricas cuidadosas e apartidárias —como aquelas pelas quais o CBO é conhecido e respeitado— sejam importantes, uma análise detalhada não é necessária para que saibamos que cara teria o sistema de saúde dos Estados Unidos caso a lei seja aprovada. Basicamente, o que teríamos seria o Texas antes da Lei de Acesso à Saúde: um Estado no qual 26% da população não idosa estava desprovida de cobertura de saúde.

    E a falta de planos de saúde não seria o único problema: muita gente teria de optar por planos de péssima qualidade —com franquias tão altas ou limitações de cobertura tão extensas que os tornariam inúteis nos momentos de necessidade.

    Pode haver pessoas para quem esse resultado é satisfatório. Os libertários linha dura, por exemplo, não acreditam que prover assistência médica aos que dela precisam seja função legítima do governo; permitir que alguns cidadãos vão á falência e/ou morram, caso adoeçam, é o preço da liberdade —de acordo com a definição que os libertários dão ao termo, claro.

    Mas os republicanos jamais defenderam essa argumentação. Em lugar disso, a cada estágio dessa luta política eles afirmam estar fazendo exatamente o contrário do que fazem: estendendo a cobertura a maior número de pessoas, reduzindo os custos dos serviços de saúde, protegendo os norte-americanos com problemas de saúde preexistentes. Não estamos falando da distorção usual do discurso político, neste caso, mas sim de dizer que branco é preto, que a terra é o céu: desonestidade bruta ao ponto de ser praticamente surreal. Isso não é só um ataque ao sistema de saúde, mas um ataque à verdade.

    Essa vileza triunfará? Sua opinião vale tanto quanto a minha, para estimar se Mitch McConnell conseguirá manter o apoio dos 50 senadores de que necessita. Mas a simples possibilidade de que algo tão cruel, envolto em tamanha fraudulência, possa ser aprovado já é causa horripilante de acusação contra o partido que ele dirige.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

    paul krugman

    Prêmio Nobel de Economia (2008), é um dos mais renomados economistas da atualidade. É autor ou editor de 20 livros e tem mais de 200 artigos científicos publicados. Escreve às terças e sábados.

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