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    Paul Krugman

    O narcisismo letal de Donald Trump

    02/10/2017 12h54

    De acordo com uma nova pesquisa de opinião pública da Universidade Quinnipiac, a maioria dos americanos acredita que Donald Trump não tenha condição de ser presidente. Isso é bastante notável. Mas é preciso imaginar se o número de pessoas que acreditam nisso não seria muito maior se elas realmente soubessem o que está acontecendo.

    Pois o problema com Trump não está apenas naquilo que ele está fazendo, mas no que não está. Em sua mente, tudo gira em torno dele –e enquanto tenta acarinhar seu ego frágil, funções básicas de governo estão sendo negligenciadas, ou pior.

    Falemos sobre duas histórias que podem parecem distintas: a negligência mortífera quanto a Porto Rico e a sabotagem do sistema de saúde americano que o governo vem praticando. O que essas histórias têm em comum é que milhões de cidadãos dos Estados Unidos sofrerão, e centenas ou até milhares deles podem morrer, porque Trump e seus subordinados são egocêntricos demais para fazer seus trabalhos.

    Vamos começar pelo desastre em Porto Rico e no território vizinho, as Ilhas Virgens Americanas.

    Quando o furacão Maria chegou, mais de uma semana atrás, deixou toda a ilha de Porto Rico sem eletricidade, e vai demorar meses para que a energia retorne. A falta de eletricidade em si pode ser letal, mas o que é ainda pior é que, graças em larga medida ao blecaute, boa parte da população ainda está desprovida de acesso a água potável.

    Quantas pessoas morrerão porque os hospitais não conseguem funcionar, ou por conta de doenças espalhadas pela água insalubre? Ninguém sabe.

    Mas a situação é terrível, e o tempo não está do lado de Porto Rico. Quanto mais tempo a situação persistir, pior se tornará a crise humanitária. Por isso, a expectativa certamente é de que a prioridade do governo dos Estados Unidos deveria estar em levar suprimentos de assistência humanitária à ilha e distribui-los. Afinal, estamos falando das vidas de 3,5 milhões de nossos compatriotas - uma população maior que a do Estado de Iowa ou da área metropolitana de San Diego.

    Assim, será que estamos vendo esforços de assistência intensos como uma catástrofe desse porte demanda? Não.

    É necessário admitir que existem dificuldades para quantificar a resposta federal. Mas não vimos nenhuma das medidas extraordinárias que nos acostumamos a esperar nessas situações.

    O deslocamento de recursos militares para a área atingida parece ter sido menor e mais lento do que no caso do Texas depois do furacão Harvey ou no caso da Flórida depois do furacão Irma, ainda que as condições em Porto Rico sejam muito mais graves.

    Até a quinta-feira, o governo Trump se recusava a suspender as restrições ao transporte de assistência estrangeira a Porto Rico, ainda que tivesse dispensado o cumprimento dessa norma no caso do Texas e da Flórida.

    Por quê? De acordo com o presidente, "pessoas que trabalham no setor de navegação" não gostavam da ideia.

    Além disso, embora faça mais de uma semana que o Maria atingiu a ilha, o governo Trump ainda não submeteu um pedido de assistência ao Congresso.

    E onde está a liderança? Há um motivo para que esperemos concentração visível do presidente em momentos de grande desastre nacional, o que inclui visitar o local do desastre o mais cedo possível. (Trump não planeja ir a Porto Rico antes da semana que vem.) Não é só teatro: é um sinal de prioridade e urgência para o resto do governo, e em alguma medida para o país como um todo.

    Mas Trump passou os dias depois do furacão no Twitter, escrevendo sobre jogadores de futebol americano. Quando enfim se dignou a dizer alguma coisa sobre Porto Rico, foi para culpar o território por seus problemas.

    A impressão que ele causa é a de um indivíduo imensamente egocêntrico que não consegue se concentrar nas necessidades dos outros, ainda que essa seja a função central de seu posto.

    E há a questão do sistema de saúde.

    Mais uma tentativa de revogar o Obamacare fracassou, pela simples razão de que o projeto de lei Graham-Cassidy, como todas as propostas republicanas anteriores, era não só malévolo como um lixo. Mas embora a Lei de Acesso à Saúde tenha sobrevivido, o governo Trump está tentando abertamente sabotar seu funcionamento.

    A sabotagem está acontecendo em múltiplos níveis. O governo vem se recusando a confirmar se pagará subsídios cruciais às operadoras de planos de saúde, para cobrir os segurados de baixa renda. Recusa-se a esclarecer se o requisito de que pessoas saudáveis adquiram planos de saúde será aplicado. Cancelou ou suspendeu programas de divulgação cujo objetivo era obter a adesão de maior número de pessoas aos planos.

    Essas ações se traduzem diretamente em mensalidades mais altas. As operadoras de planos de saúde não sabem se terão custos importantes reembolsados, e têm todo motivo para antecipar que o universo de segurados seja menor e que a proporção de pessoas já doentes seja mais alta, nele. E é tarde demais para reverter o estrago: as operadoras de planos de saúde estão tomando sua decisão final sobre as mensalidades para 2018 esta semana.

    Por que Trump e seu pessoal estão fazendo isso? Será um cálculo cínico –causar o colapso da Lei de Acesso à Saúde, e em seguida afirmar que ela está condenada? Duvido. Para começar, não estamos falando de pessoas conhecidas por seu cálculo estratégico profundo.

    Além disso, a Lei de Acesso à Saúde não entrará em colapso; simplesmente se tornará um programa com foco nos norte-americanos mais pobres e mais doentes - e a oposição política à sua revogação não desaparecerá. Por fim, quando as más notícias começarem a surgir, todo mundo saberá a quem culpar.

    Não, a sabotagem da Lei de Acesso à Saúde não deve ser vista como estratégia, mas como um chilique. Não conseguimos revogar o Obamacare? Bem, então vamos estragá-lo. O ponto não é atingir qualquer objetivo claro, mas salvar a autoestima machucada do presidente.

    Em resumo, Trump não é digno do alto posto que ocupa, ou de qualquer outro. E o estrago causado por seu despreparo continuará a crescer.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

    paul krugman

    Prêmio Nobel de Economia (2008), é um dos mais renomados economistas da atualidade. É autor ou editor de 20 livros e tem mais de 200 artigos científicos publicados. Escreve às terças e sábados.

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