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    Por quê? Economês em bom português

    Contra a crise da Previdência, negação não é remédio

    28/02/2017 05h00

    O governo da jovem terra de Aquém-Mar, como todos os governos, tinha um orçamento. Gastos e impostos. Algumas vezes os impostos ficavam por baixo e o governo emitia títulos para cobrir a diferença. Depois de um tempo, a arrecadação crescia novamente e a administração de AM repagava suas dívidas. Apesar de não ter praia, a vida em Aquém-Mar era aprazível.

    Como em todos os lugares que dão certo, porém, a população em AM afortunadamente começou a envelhecer e a parar de trabalhar. Isso, no entanto, gerou um probleminha: como custear o dia a dia dos que não mais trabalhavam (chamavam a esses habitantes "aposentados"), mas continuavam comendo, vestindo-se, indo ao médico (cada vez mais, até pararem de vez)? Em Aquém-Mar, até então, não existiam idosos.

    O governo, que cobrava três tipos de impostos (tipo-B, tipo-C e tipo-D), resolveu então criar um novo, o tipo-Aposentado. Esse imposto tipo-A era pago pelos que ainda trabalhavam. A medida causou certa revolta no começo, mas os mais jovens entenderam que um dia também iriam se aposentar e que, lá no futuro, esse novo imposto tipo-A os serviria bem. Os jovens confiavam que o esquema não seria desmantelado nem naufragaria no meio do caminho.

    E a vida em Aquém seguiu seu curso —com um pouco mais de imposto, mas tudo bem.

    Anos mais tarde, o problema ressurgia com o vigor de uma fênix chamuscada. A população de idosos havia se expandido tremendamente. Antes, para cada aposentado havia dez trabalhadores jovens; agora, essa proporção caíra para um para cinco. Para manter os mesmos gastos com aposentadoria, seria preciso arrecadar mais. Uma constatação aritmética.

    Mas o governo não queria dobrar a alíquota do tipo-A, que incidia sobre o salário dos jovens, de 10% para 20%. Resolveu, então, criar outros impostos, chamados tipo-Ab, tipo-Ac e tipo-Ad. Eram impostos destinados a pagar os gastos com aposentados, mas não mais incidiam sobre o salário dos mais jovens (pelo menos não diretamente) e sim sobre o lucro das empresas, a venda de chicletes e os serviços bancários. Claro, no fundo o que ocorria era essencialmente a mesma coisa: os que não ainda trabalhavam seguiam fazendo girar a roda da economia, pagando pelo contingente sempre crescente de aposentados.

    O povo pareceu despreocupar-se, pois, além de aritmética ser algo pouco romântico, uma professora da região somou todos os impostos tipo-A ( A, Ab, Ac e Ad) e percebeu que os comentários alarmistas eram descabidos: tudo estava OK, pois a soma desses tributos era suficiente para cobrir os gastos com aposentadoria. Eureca! Não havia deficit, havia superavit!

    Claro, os impostos totais haviam saltado enormemente de patamar, mas deficit na Previdência não havia. Os críticos —apelidados de neoloucos— estavam comparando os gastos previdenciários com o imposto tipo-A apenas, mas (talvez maldosos?) se esqueciam de somar Ab, Ac e Ad.

    A carga tributária havia crescido de modo assustador em Aquém-Mar. E precisava crescer ainda mais, anunciou certo dia o governador. Por quê? Porque, embora as pessoas vivessem mais e mais, seguiam se aposentando com 55 anos de idade. E, aos 80, casavam-se com jovens de 25 que herdavam sua pensão. Ao escutar tal proposta, o povo, aviltado, disse NÃO. O governo, assustado, recuou. Depois voltou e anunciou: ninguém se aposenta antes dos 65 anos e vamos reduzir as aposentadorias dos viúvos! O povo, revoltado, disse NÃO. E o governo, temeroso, recuou. Mas o problema, caros, insistia em não desaparecer —com sói ocorrer com os problemas.

    Aí houve uma eleição. Insatisfeitos, os Aquém-marzenses elegeram um novo governo, que no primeiro dia anunciou: nada de aumentar impostos e nada de segurar os gastos. Isso, num mundo moderno, não é mais necessário! Emitiremos títulos novos, que pagarão por essas despesas. O povo, inebriado, não disse nada.

    *

    Aquém-Mar hoje não existe mais e poucos se lembram daquele povo que vivia alegre longe do litoral. Diz a lenda que certo dragão (apelidado de "Inflacionário" ou "Incendiário", não se sabe ao certo) sobrevoou a região e, furioso, lançou sobre ela uma torrente de fogo que queimou primeiro os títulos da dívida, depois todo o resto. Diz outra que Aquém-Mar, enfraquecida por tantos impostos e devedora a povos estrangeiros, foi invadida pelo feroz reino de Além-Mar.

    Talvez nunca saibamos o que levou Aquém-Mar à derrocada. Mas uma coisa é certa: seu povo, tomado por versão aguda de negacionismo, falhou em promover uma reforma previdenciária.

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