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    Rafael Garcia

    O prêmio Nobel da misoginia

    15/06/2015 02h15

    Se você quer saber o que uma pessoa realmente pensa sobre o mundo, a melhor coisa que você pode fazer é dar a ele um Nobel. A história do prêmio é recheada de laureados que queimam a língua dizendo coisas inadequadas, e o último deles teve seu momento infeliz na semana passada.

    A "vítima" da vez foi o bioquímico Tim Hunt, 72, ganhador do prêmio na categoria de Medicina e Fisiologia 2001, agora mais conhecido como autor de um comentário sexista em uma palestra na Coreia do Sul. Eis a declaração que custou seu cargo de professor honorário no University College de Londres:

    "Deixem-me contar a vocês sobre o meu problema com as mulheres. Três coisas acontecem quando elas estão no laboratório. Você se apaixona por elas, elas se apaixonam por você e quando você as critica, elas choram."

    Essas três sentenças reúnem tantas coisas erradas que é difícil acreditar que o cientista estivesse falando a sério. Para não deixar ninguém em dúvida, ele continuou elaborando seu pensamento na ocasião. "Sou a favor de laboratórios de gênero único", disse, ponderando que não pretendia tornar-se "um obstáculo para as mulheres."

    A conversa não estava sendo gravada, e talvez Hunt tenha se sentido à vontade para dizer coisas indizíveis ali. A palestra, porém, ocorreu dentro de uma conferência de jornalismo científico, e não demorou muito até que uma transcrição de seu monólogo misógino fosse parar na internet.

    De volta à Inglaterra, em entrevista à BBC, ainda se desculpou dizendo que "só quis ser honesto" ao explicar que relacionamentos amorosos atrapalham o trabalho científico. "Em um laboratório", disse, "é muito importante que as pessoas tenham as mesmas chances de sucesso".

    Com esse último remendo, Hunt conseguiu ainda a proeza de transformar uma ofensa genérica –dirigida a todas as mulheres cientistas do mundo– em um ato de desrespeito específico com mulheres de seu círculo pessoal e profissional.

    CHANCES DE SUCESSO

    Por exemplo, sua mulher, Mary Collins, é uma respeitada imunologista no University College e já ocupou cargos de chefia na instituição. Teria ela sido favorecida pelo marido? Teria ela favorecido ele? A declaração vaga e descuidada de Hunt deixou para a imaginação de seus interlocutores as especulações sobre o que pode ter acontecido.

    Mas a coisa não parou por aí. O discurso misógino do cientista parece ter desagradado bastante Paul Nurse, geneticista que compartilhou o Nobel de Medicina de 2001 com Hunt pela descoberta de moleculas reguladoras do ciclo de divisão celular. Hoje presidente da Royal Society, a mais importante associação científica britânica, Nurse assinou um comunicado institucional condenando as declarações do ex-colega.

    Hunt havia trabalhado no laboratório de Nurse antes de realizar os trabalhos seminais que lhe renderam o Nobel, e em seus discursos de premiação, ambos citam várias mulheres como autoras de estudos importantes na linha de pesquisa que seguiam. Uma reportagem do "Guardian" rastreou a importância de várias delas, particularmente Joan Ruderman, Katherine Swenson e Melanie Lee.

    Todas colaboraram com Nurse em algum momento e realizaram estudos essenciais para que o trabalho de Hunt fosse reconhecido. O bioquímico descobriu a proteína ciclina em ouriços-do-mar, mas Ruderman e Swenson essencialmente provaram que a ciclina está ligada ao ciclo de divisão celular, e Lee descobriu que ela funciona da mesma maneira em vertebrados, incluindo humanos.

    Um Nobel só pode ser compartilhado por no máximo três pessoas, porém, e sempre que um Nobel vai para um grupo numa área de pesquisa multicolaborativa, há um debate intenso sobre quem deve subir no pódio ou não. Talvez não tenha surpreendido ninguém o fato de que, no caso do Nobel dado à descoberta de moléculas reguladoras do ciclo celular, o terceiro nome tenha sido o de outro homem branco, Leland Hartwell, da Universidade de Washington.

    É difícil saber agora se a história por trás dos comentários sexistas de Hunt não inclui algumas de suas ex-colegas. Será que todas elas obtiveram "as mesmas chances de sucesso" que ele?

    DA CIÊNCIA À SOCIEDADE

    Por fim, um aspecto particularmente ridículo das declarações de Hunt é o de apresentar a ciência como algo acima dos reles mortais, feita por entes superiores que não podem se deixar distrair com a presença de indivíduos do sexo oposto. O que mais é tão importante que não pode ser tumultuado pela convivência com mulheres? A política? Os negócios?

    Não deixa de ser incrível que uma pessoa da qual se espera ouvir coisas inteligentes –e diga não ter intenção de ofender os outros– ser incapaz de perceber que esse tipo de postura preconceituosa não afeta apenas seu círculo imediato. James Watson, codescobridor da estrutura do DNA e também ganhador do Nobel, também se envolveu em um imbróglio parecido após tecer declarações racistas em 2007.

    Após toda a controvérsia de agora, Hunt decidiu ele próprio pedir afastamento do University College de Londres, mas sua conversa com a reitoria da instituição não deve ter sido coisa muito boa. "O UCL foi a primeira universidade da Inglaterra a receber estudantes mulheres em termos equiparáveis aos dos homens, e a universidade acredita que esse resultado [a renúncia de Hunt] seja compatível com o compromisso que temos para a igualdade de gêneros", declarou a instituição em um comunicado oficial.

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