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    Rafael Garcia

    Lições do Katrina, dez anos depois

    10/08/2015 02h00

    No final deste mês, a devastadora passagem do furacão Katrina pelo sul dos EUA completa dez anos. A tragédia, que deixou mais de 1.800 mortos e causou mais de US$ 100 bilhões de prejuízo, até hoje é objeto de estudo, e possíveis ligações daquele evento climático extremo ainda são fruto de controvérsia. A principal lição a ser aprendida naquela catástrofe, porém, talvez não seja em sua causa, mas em como ela poderia ter sido prevenida.

    Há dois anos, visitei pela primeira vez New Orleans, a cidade mais afetada. Pouco da memória da tragédia ainda era visível no French Quarter, o centro turístico da cidade, mas bastava uma passagem pela periferia, no leste, para ver as casas abandonadas onde plantas de mais de um metro já brotavam da lama acumulada dentro de residências destruídas. Marcações de grafite feitas pelas equipes de salvamento ainda não haviam sido apagadas. Algumas janelas ainda estavam cobertas pelas tábuas grudadas a prego, medida de proteção tomada por moradores que nunca retornaram.

    A inundação de New Orleans expôs muitas feridas nos EUA. Uma delas era a da existência de um enclave de pobreza no país mais poderoso do mundo, onde muitas pessoas não dispunham de recursos para enfrentar um desafio daquela magnitude. Outra foi a do desprezo de políticos conservadores pelo aconselhamento científico. Algo que muitos americanos acharam difícil de engolir é que a tragédia de fato já havia sido anunciada por estudos do Corpo de Engenheiros do Exército dos EUA.

    Os técnicos responsáveis por monitorar a capacidade dos diques que mantinham setores da cidade abaixo do nível do mar já alertavam que o sistema de contenção não suportaria um furacão daquela magnitude. A construção dos diques também havia comprometido o padrão natural de sedimentação na região do delta do rio Mississippi, reduzindo em parte a proteção natural que terras pantanosas davam à costa. Além disso, climatólogos já buscavam por um sinal do aumento na intensidade de tempestades tropicais como resposta ao aquecimento global, ainda que isso ainda não estivesse claro na época. O que estava claro é que o risco de um furacão de categoria 5 como o Katrina passar por New Orleans nunca foi desprezível. O desprezo das autoridades pelo alerta é que se evidenciou da pior maneira possível.

    LIGAÇÃO INDIRETA

    Só dois anos depois da passagem do furacão, estudos do Centro Nacional de Pesquisa Atmosférica dos EUA puderam estabelecer uma ligação entre o Katrina e a mudança climática. Não é uma ligação direta, entretanto. A ocorrência e a trajetória do Katrina não podem ser atribuídas ao aquecimento global, mas o aumento do calor no Atlântico Norte já estava se traduzindo em uma vaporização adicional do mar, o combustível de tempestades. O número de furacões fortes em 2005 provavelmente teria sido menor em circunstâncias diferentes, ainda que não seja possível dizer que o Katrina não teria existido.

    A maioria dos estudos globais dizia, e ainda diz, que o bojo do impacto da mudança climática –por meio de incrementos às tempestades e aumento do nível do mar– se daria nos países em desenvolvimento, justamente aqueles com menos recursos para remediar o problema construindo diques. O Katrina, porém, serviu como uma demonstração de que lugares como os EUA não estão imunes.

    DEMOCRATIZAÇÃO DO RISCO

    Um estudo na edição de sexta-feira passada da revista "Science" mostra que os impactos da construção de diques e barragens em regiões de deltas fluviais para conter tempestades e a elevação da linha d'água vai aumentar a vulnerabilidade de cidades nessas áreas a longo prazo. Algumas metrópoles de países ricos, incluindo Nova York e Londres, poderiam no futuro se ver enfrentando problemas como o de Nova Orleans. Lá, a alteração na sedimentação arruinou áreas pantanosas que absorvia o impacto de tempestades e ainda fez parte da cidade afundar alguns centímetros. Obras adicionais podem ser feitas para remediar o problema, mas o custo aumenta progressivamente, a ponto de se tornar proibitivo.

    Isso tudo, concluem os autores, torna a ameaça a cidades costeiras ricas equiparável àquela sobre países pobres no futuro. Seria bom se essa "democratização do risco" servisse como incentivo para que nações ricas e pobres aumentassem sua ambição nas metas de redução de gases do efeito estufa. A maioria dos estudos econômicos mostra, afinal, que mitigar o aquecimento global será mais barato do que remediar os impactos de um clima fora de controle.

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