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    Rafael Garcia

    Fraude na ciência: quando o guarda ajuda o ladrão

    24/08/2015 09h42

    Qualquer pesquisador que já tenha publicado um artigo científico formal –um "paper", anglicismo que a ciência brasileira incorporou– sabe o que é o processo de revisão por pares –o chamado "peer review". Esse procedimento, no qual especialistas independentes avaliam anonimamente o grau de ineditismo e solidez de um trabalho, é um filtro que visa barrar a publicação de estudos contendo erros primários ou manipulações. Nos últimos anos, porém, um número razoável fraudes tem ocorrido não só no processo de autoria artigos, mas também na realização da revisão por pares.

    Ainda não está clara real dimensão do problema, mas um comunicado divulgado na semana passada pela Springer, uma das maiores editoras científicas do mundo, foi uma boa demonstração de que o falso peer review é provavelmente uma prática mais comum do que se imagina. Após conduzir uma investigação interna, a editora encontrou nada menos do que 64 estudos aprovados para publicação por meio de falsa revisão. Os trabalhos haviam saído em dez diferentes periódicos da Springer, que hoje detém cerca de 3.000 títulos.

    Os indícios das fraudes eram pareceres vinculados a falsos endereços de e-mail de revisores. Alguns eram endereços errados atribuídos a cientistas reais, e outros eram atribuídos a pessoas totalmente fictícias. Não foi a primeira vez que um caso semelhante envolveu a Springer, multinacional alemã que recentemente se fundiu com o grupo Nature. A editora é proprietária também dos periódicos do portal BioMed Central, de pesquisa biomédica, que no início do ano "retrataram" 43 estudos (cancelaram suas validades) também aprovados via falsas revisões.

    O RABO ABANA O CÃO

    Praticamente todos os estudos envolvidos na última lista da Springer eram de autoria de pesquisadores chineses na área de biologia molecular. É um claro indício de que essa área da ciência, e as biomédicas em geral, estão nutrindo mais laboratórios com uma cultura cartorial de fazer ciência sem ousadia nenhuma. Publica-se um estudo com o único fim de justificar o pedido de verba para a próxima pesquisa e assegurar os salários dos pesquisadores residentes.

    Quando essa estratégia dá certo, a coisa começa a tomar uma dimensão maior, até que o "rabo passa a abanar o cachorro", e a busca pelo conhecimento deixa de ser um objetivo. O crescimento explosivo da produtividade científica chinesa na última década esconde muito disso, e as falsas revisões parecem estar se tornando agora uma peça chave para perpetrar fraudes.

    Uma estimativa feita pelo site Retraction Watch, que monitora fraudes em ciência, sugere que cerca de 15% das retratações feitas nos últimos três anos em revistas científicas mundo afora ocorreram por causa de falsos processos de revisão. Mas quem está interessado em promover isso?

    Revistas de baixo padrão muitas vezes têm como meta apenas carimbar e publicar estudos para fazer número, e não está claro se todos os autores dos artigos cancelados estão envolvidos na corrupção dos editores. Aparentemente, porém, os esquemas de fraude envolvem vários elos do processo de publicação científica. Em outras palavras, são crimes em que o guarda ajuda o bandido.

    A Sage, uma editora científica americana, também adotou a decisão de ser mais transparente com os casos de falsas revisões que descobriu internamente. A empresa já retratou mais de 77 estudos de algumas publicações, a maioria nas áreas de física e engenharia. Uma única revista, o obscuro "Journal of Vibration and Control" havia falsificado o peer review de 60 artigos envolvendo um grupo de pesquisa de Taiwan.

    PONTA DO ICEBERG?

    O total de casos revelados até agora, mais de 250 desde 2012, é provavelmente apenas uma fração daquilo que tem ocorrido. As duas editoras que decidiram reconhecer seus problemas são empresas com alguma reputação a zelar, pois possuem publicações honestas em seus catálogos. Muitas associações científicas e editoras pequenas, porém, não possuem incentivos para vir a público quando ocorre um caso desses.

    O Cope (Comitê de Ética em Publicação), organização bancada por uma associação mundial de editores, afirma que muitas vezes os mentores das fraudes não são nem os autores do estudo, nem os editores dos periódicos, e sim empresas de consultoria para pesquisa. Essas companhias têm proliferado no mundo oferecendo serviços como revisão de manuscritos, checagem de cálculos etc. Elas prometem aumentar as chances de um estudo ser aceito para peer review. Às vezes, porém, essa "ajudinha" inclui produzir os pareceres falsos para fraudar processos de revisão.

    Muitas vezes o truque consiste em submeter um estudo já sugerindo o nome de algum cientista que tenha qualificação para revisá-lo. Ao fazer isso, o autor do trabalho pode criar um e-mail falso no qual vai receber os pedidos de parecer e poderá avaliar seus próprios estudos, usando uma falsa identidade. Em 2012, o farmacólogo coreano Hyung-In Moon conseguiu revisar quatro de seus próprios artigos usando esse truque, até ser desmascarado tentando o quinto.

    Não é novidade que a ciência é um empreendimento humano vulnerável à desonestidade. O peer review, a rigor, não foi concebido como um mecanismo para dar a palavra final sobre se um trabalho está correto ou não. Ele é apenas um filtro para abortar a publicação de estudos que tenham problemas mais evidentes.

    Até periódicos científicos prestigiosos como a dupla "Nature" e "Science" por vezes têm de retratar estudos, mas raramente por fraude deliberada e nunca por falsificação de revisões. O risco da proliferação dos falsos peer reviews não parece ser uma ameaça à ciência de alto nível, mas é algo que, se sair do controle, vai aumentar o volume de produção de uma ciência que parasita a academia e não tem nenhum valor intelectual.

    MADE IN ASIA?

    Por enquanto, o fenômeno do falso peer-review parece estar mais restrito a alguns núcleos acadêmicos de origem asiática. Não seria uma surpresa total, porém, encontrar casos similares na América Latina.

    A academia no Brasil, outro país onde a produção científica cresceu às custas da perda de qualidade, já foi palco de fraudes como redes de citações artificiais para "turbinar" artigos científicos, fabricação de dados e inúmeros casos de plágio. E empresas de consultoria que parasitam a atividade de pesquisa também já estão presentes aqui. Diante desse cenário, não pareceria excesso de zelo das agências de fomento como Fapesp e CNPq realizar uma sondagem sobre a honestidade do peer review no Brasil. As grandes editoras já estão fazendo isso mesmo em países onde a ciência tem padrão mais rigoroso.

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