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    Rafael Garcia

    O mundo sem Oliver Sacks

    31/08/2015 05h58

    O neurologista e escritor Oliver Sacks, que morreu ontem aos 82 anos após uma melancólica luta contra um câncer metastático, não deixou como órfãos intelectuais apenas os admiradores de sua literatura. A partida do autor de "Tempo de Despertar" marca também a perda de uma cultura médica que agora parece perdida no tempo, uma maneira de produzir conhecimento que poucos dominam e pouquíssimos conseguem comunicar.

    Sacks não era um cientista no sentido estrito da palavra, ao menos não um do tipo que estivesse sempre debruçado sobre resultados de pesquisas, planilhas e dados. Não era um autor prolífico de estudos em revistas médicas e não parecia preocupado com nenhum tipo de produção acadêmica formal. Era um médico que escutava histórias e escrevia livros.

    Hoje vivemos tempos em que há ensaios clínicos com dezenas de milhares de pacientes, pesquisas que sequenciam o DNA de milhares de pessoas e estudos mapeando o cérebro de dezenas de de indivíduos. Em meio a esse turbilhão de dados, Sacks mostrava o quanto um médico pode aprender quando se debruça sobre um único indivíduo. Mais do que isso, mostrou que muita coisa só se pode aprender enxergando as pessoas como histórias de vida, como narrativas.

    Não foi à toa que sua prática clínica de estudos "longitudinais" acabou ficando tão entrelaçada com sua produção literária. A impressão que dá é que provavelmente umm não poderia viver sem a outra.

    Como é possível, por exemplo, entender o caso de amnésia de um veterano de guerra sem conhecer sua história de vida? Como é possível entender a visão de mundo de um pintor daltônico sem mergulhar na base neurológica que explica sua condição?

    Sacks pode não ter sido um autor frequente na produção acadêmica formal, mas as histórias que contou em livros como "O homem que confundiu sua mulher com um chapéu" influenciaram gente muito além do círculo literário. Sua geração de neurologistas talvez tenha sido a última a ver mais graça em lançar um olhar minucioso sobre um paciente portador de lesão cerebral do que em produzir imagens de ressonância magnética de centenas de voluntários. Se essa tradição de colocar estudos de caso numa posição de protagonismo não morreu ainda na ciência médica, Sacks talvez tenha sido um dos responsáveis por mantê-la viva até agora.

    Isso não significa que o neurologista escritor tivesse algum tipo de desprezo pela ciência mais técnica e formal. Pelo contrário, ele era um leitor assíduo de artigos científicos nos grandes periódicos, e seu círculo de amigos próximos incluía gente como o neurocientista Christoph Koch e o neurobiólogo Eric Kandel, ganhador do prêmio Nobel. Mas ele sabia que sua melhor maneira de contribuir era outra e que seu estilo de produzir conhecimento precisava passar pela literatura.

    Sacks, curiosamente, foi um neurologista aberto à interação com a psicanálise, um tipo de terapia que caiu em desgraça em boa parte da academia americana. Mesmo ciente das críticas metodológicas ao método freudiano para estudar a mente, o médico escritor valorizava a tradição clínica e continuou fazendo sessões de análise até poucos meses antes de morrer.

    Os últimos meses de vida de Sacks foram marcados por sentimentos profundos de melancolia e nostalgia expostos numa série de artigos que publicou no "New York Times", após receber o diagnóstico de metástase no câncer. No último deles, revelou-se publicamente como gay e expôs feridas familiares nunca reveladas. Um livro de memórias autobiográficas contando momentos difíceis de sua vida ainda está no prelo. Sua dor, como a de muitos outros grandes escritores, foi rica em palavras.

    Tive a oportunidade de conhecer Sacks há quatro anos, entrevistando-o por ocasião do lançamento de seu livro "Alucinações". Nossa conversa foi publicada em duas partes na Folha (Parte 1 - Parte 2). O médico que me recebeu na época em seu escritório no West Village, em Nova York, não era ainda aquele que se logo se veria atormentado com a aproximação da morte. Era ainda o homem vívido que falava de projetos futuros de livros, vontade de viajar pelo mundo e prazer em trocar cartas com pessoas desconhecidas. Esse ímpeto explorador de Sacks, que explorou pensamentos e emoções daqueles que foram seus personagens, é sua personalidade que permanecerá imortal em sua obra.

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    Este texto marca o fim de meu período de colaboração com a Folha, uma publicação onde aprendi muito com outros jornalistas e onde construí boa parte da minha carreira de repórter de ciência. Estou de saída para outras paragens e desejo aos colegas de redação que continuem fazendo um bom trabalho. Agradeço aos leitores que me acompanharam até aqui.

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