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    Raquel Rolnik

    O lugar da participação popular

    16/06/2014 03h00

    Em meio à multiplicidade de pautas que tomam conta das ruas do país desde junho do ano passado, uma delas parece articular todas as demais: a contestação do nosso sistema político e a reivindicação de mais espaços de participação dos cidadãos nas decisões sobre os projetos, investimentos e modos de gestão da coisa pública.

    Em resposta a essa demanda, no final do mês passado, o governo federal estabeleceu, por decreto, a Política Nacional de Participação Social, institucionalizando instrumentos de diálogo com a sociedade civil já amplamente utilizados por governos de distintos matizes políticos, como conselhos, conferências, audiências públicas, entre outros.

    Imediatamente, o tema virou um escândalo jurídico-político. Parlamentares vociferam contra a medida, classificando-a, em resumo, de tentativa inconstitucional de esvaziar o poder do Congresso, gerando um poder "bolivariano" paralelo. Muito barulho por nada!

    Em primeiro lugar, foi a nossa Constituição, em seu artigo 1º, que instituiu um modelo de governo misto entre a democracia representativa e a direta.

    Infelizmente, parece que só desenvolvemos –e mal– a primeira.

    Se nossa democracia representativa dá sinais claros de sua insuficiência, para não falar de seu esgotamento, isso significa que precisamos, sim, urgentemente, desenvolver e aprofundar instrumentos de democracia direta que permitam aos cidadãos sair da posição de espectadores e intervir diretamente na formulação, implementação e fiscalização de políticas públicas.

    As manifestações que explodem em nossas cidades mostram que a população não aceita mais que os processos decisórios ocorram a portas fechadas, capturados por interesses empresariais ou pessoais através de uma rede de laços profundamente encravada em nosso Estado e sistema político.

    Com a multiplicação das conferências, conselhos e consultas públicas em todo o país nos últimos anos, pudemos experimentar na prática instrumentos de democracia direta. Por isso hoje já sabemos o quanto esses espaços muitas vezes são contaminados pela mesmíssima cultura política presente no mundo da democracia representativa. Sabemos também o quanto é frustrante, para quem participa, perceber como os processos decisórios reais se situam bem longe dali.

    A meu ver, no entanto, não é uma Política Nacional de Participação Social –instituída ou não por meio de decreto– que dará conta de enfrentar e resolver esses problemas. Sem mudanças na organização do nosso Estado e sistema político, a potência dos processos participativos não se amplia –nem se reduz– com sua institucionalização.

    Esse não é um tema simples. As transformações do sistema político que precisamos são profundas e merecem ampla discussão, inclusive com a avaliação crítica dos instrumentos de participação e controle social que já dispomos.

    Para isso é necessário enfrentarmos com urgência o debate da reforma política, abertamente. E é nele que a discussão sobre as formas de exercício da democracia direta, imprescindíveis, devem ter lugar.

    Deixar tudo como está só interessa a quem se favorece de decisões negociadas em corredores e tomadas a portas fechadas. Certamente, não é a maioria do povo brasileiro.

    raquel rolnik

    Escreveu até junho de 2016

    É arquiteta e urbanista e professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP.

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