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    Raquel Rolnik

    Violência e moradia

    17/11/2014 02h00

    Na semana passada, a imprensa noticiou a invasão de um conjunto habitacional do programa Minha Casa Minha Vida (MCMV) por traficantes. Essa não é a primeira vez que nossos jornais veiculam esse tipo de informação.

    Enquanto participava de uma pesquisa sobre o MCMV em várias cidades brasileiras, constatamos, nas nossas idas a campo, que vários conjuntos -habitados ou não- estavam sob controle de narcotraficantes ou de milícias.

    O narcotráfico, as milícias ou as práticas extralegais da polícia são hoje a face mais visível -e letal- de uma cultura da violência solidamente incrustada na nossa sociedade. Essa cultura não é monopólio desses atores sociais, nem seu âmbito se restringe ao universo no qual atuam. Insidiosa e permanente, estrutura relações que começam dentro de casa (a violência doméstica) e atravessam nosso mundo social.

    Informações divulgadas recentemente pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública só confirmam isso: em 2013, no Brasil, mais de 50 mil pessoas foram assassinadas e outras 50 mil foram estupradas, segundo registros das denúncias. As principais vítimas de homicídios são jovens negros; são esses também as maiores vítimas das 11 mil execuções realizadas pela polícia, que, em apenas cinco anos, matou mais do que a polícia dos EUA em 30 anos. Essa juventude é vítima também de nosso sistema judicial -40% de nossa população carcerária (composta, em sua maior parte, por jovens negros) sequer foram julgados, ou seja, são presos provisórios, que não foram nem condenados nem absolvidos.

    Embora, como já afirmei, a violência seja parte integrante -e oculta- de nossa cultura, ao longo da história de nossas cidades construímos a ideia de que existe "o lugar" da violência: esse lugar seria a favela. Desde os tempos da República Velha, as favelas são vistas como lugar sem norma nem lei e, portanto, espaço propício para acolher desordeiros, bandidos e criminosos. Essa ideia termina justificando, por exemplo, que, no afã de combater o tráfico, a polícia entre nas casas de moradores de favelas arrebentando tudo, atirando, deixando vítimas pelo caminho.

    Essa tese alimenta ainda outra ideia, repetida há pelo menos 50 anos: a de que retirar os moradores desses lugares e realocá-los em conjuntos habitacionais murados, formalizados, regularizados e ordenados levaria ao fim da violência. Nem mesmo a experiência desastrosa da Cidade de Deus, no Rio de Janeiro, derrubou esse mito. E continuamos insistindo.

    As imagens da invasão do conjunto do MCMV que vimos recentemente nos jornais ou as de milicianos ou chefes do tráfico exercendo o papel de síndicos em condomínios que o programa construiu para reassentar removidos de favelas mais uma vez demonstram que "o problema" não é a favela, mas a própria violência.

    Ou compreendemos o fenômeno da violência de forma mais ampla, como elemento que está entranhado na nossa sociedade e na nossa cultura, dentro e fora do Estado, em todas as classes sociais, na favela e nos condomínios de luxo, ou não conseguiremos enfrentar essa questão. A maior parte das vítimas, porém, continuará do lado mais fraco dessa corda.

    raquel rolnik

    Escreveu até junho de 2016

    É arquiteta e urbanista e professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP.

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