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    Raquel Rolnik

    Carros e centros

    15/12/2014 03h00

    A prefeita de Paris acaba de anunciar que, até 2020, quer reduzir drasticamente a poluição na cidade e, para isso, pretende radicalizar a mudança da matriz de mobilidade. Paris já implantou 652 km de ciclovias, tem um dos maiores sistemas de compartilhamento de bicicleta (vélib) e já oferece um de carros (autolib). A proposta agora é introduzir o compartilhamento de utilitários (utilib), dobrar a extensão das ciclovias e fechar o acesso aos quatro distritos centrais para carros particulares. A circulação no centro de Paris seria feita apenas por transporte público, bicicleta e a pé. As exceções seriam veículos de moradores, serviços de entrega e emergência, além dos táxis, com utilização de tipo específico de combustível.

    No centro de São Paulo, desde o final dos anos 1970, temos uma extensa área de circulação exclusiva de pedestres -são os calçadões entre a Sé e a República, que ocupam hoje cerca de 400 mil m². Ao ler a notícia sobre Paris, lembrei que, não faz tanto tempo, a Associação Viva o Centro propunha, além de medidas para melhorar os calçadões, a ampliação dos pontos onde a circulação de carros é permitida.

    A associação se queixava de que "mais de dois quilômetros lineares dos calçadões do centro estão situados a mais de cem metros de distância de um ponto acessível por veículos particulares ou mesmo de estações de metrô" e apresentava propostas de intervenção para reduzir esse trecho. A ideia partia da tese de que a "decadência" do centro estaria associada à dificuldade de acesso e estacionamento de veículos, o que teria contribuído com a "fuga" de empresários para outras áreas da cidade. Facilitar o acesso de carros particulares seria uma medida que ajudaria a "revitalizar" a região.

    A tese não se sustenta. A migração de parte do setor empresarial começou antes mesmo da construção dos calçadões, motivada pela abertura de novas frentes de expansão imobiliária. Neste movimento, empresas abandonaram o centro na direção da Paulista para depois seguir em direção das margens do rio Pinheiros.

    Além disso, a política de transportes transformou o centro em um grande terminal intermodal, com estações de metrô e vários terminais de ônibus. Ou seja, o que alguns definem como "decadência" nada mais é do que a popularização do centro. É certo, entretanto, que se os térreos comerciais continuam vivos, os andares superiores dos edifícios se esvaziaram, sem que qualquer política de reabilitação para novos usos –inclusive moradias– tenha sido implementada.

    O debate sobre a abertura dos calçadões foi feito há uns dez anos -e imagino que hoje dificilmente alguém propusesse algo do tipo-, mas mostra a força do paradigma do urbanismo dependente do automóvel que estrutura nossa cidade há mais de meio século.

    Apenas muito recentemente começamos a enfrentar com seriedade o tema da mobilidade, que aos poucos vem se traduzindo em ações concretas, mas ainda temos um longo caminho a percorrer.

    Nele, repensar o centro, seus usos, a forma como o transporte público se insere na região, atualizando, inclusive, seus calçadões, é fundamental para uma São Paulo com menos carros, mais espaços públicos qualificados e formas mais saudáveis e confortáveis de circular, o que parece ser o desejo de cada vez mais paulistanos...

    raquel rolnik

    Escreveu até junho de 2016

    É arquiteta e urbanista e professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP.

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