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    Raquel Rolnik

    Vozes das ruas e desafios das cidades

    23/03/2015 02h00

    Erra feio quem procura interpretar as manifestações de março como uma espécie de pesquisa eleitoral na rua para verificar quem é contra ou a favor da presidente e de seu partido, apesar da insistência nessa tese por parte da coalizão econômico-política que governa o país desde sempre, habituada a promover mudanças para deixar tudo como está.

    Assim como ocorreu em junho de 2013, as manifestações do último dia 15 não podem ser lidas como voz uníssona. Pelo contrário, o que vimos foi uma diversidade de vozes unificadas por um profundo sentimento de indignação com o modo brasileiro de governar.

    É verdade que, agora, mais do que em 2013, a revolta com os escândalos de corrupção deu a tônica dos protestos. Nesta coluna, mais de uma vez, aliás, já comentei como o tema da corrupção incide nas políticas urbanas, a ponto de os processos decisórios estarem sobredeterminados por interesses privados fortemente encravados no Estado.

    O modelo do jogo político-eleitoral, ao qual está vinculada a prática da corrupção, não apenas contamina o destino das finanças públicas, desviando recursos, mas, principalmente, determina para onde e para quem vão esses recursos e decide o que vai ou não ser feito em nossas cidades.

    Diante desse modelo, os canais de representação institucionais encontram-se hoje fragilizados, tanto nas casas legislativas -as câmaras municipais deixaram de ser espaço de elaboração e discussão de políticas para operar na lógica de base governista versus oposição-, como no Executivo, que, obrigado a acomodar interesses de sua base de apoio, especialmente distribuindo cargos, esvazia sua capacidade de elaborar, negociar e executar políticas públicas capazes de redirecionar os rumos das cidades.

    Por outro lado, os espaços de participação e democracia direta criados sob pressão popular desde os anos 1990 ou estão também contaminados e instrumentalizados sob a lógica partidária ou são escanteados dos processos reais de elaboração de políticas e de tomada de decisão, tornando-se fóruns -muitas vezes, irrelevantes.

    As crises da água, da mobilidade e da moradia são produtos desse modo brasileiro de governar. As ações governamentais devem apresentar resultados em quatro anos e ser visíveis o suficiente para reeleger mandatários, que precisam ter "o que mostrar" na propaganda.

    Devem ainda ser capazes de acomodar interesses de empreiteiras, concessionárias de serviços, incorporadoras e loteadores, e distribuir benefícios individuais para suas bases, de modo que nas eleições se obtenham os recursos para custear as campanhas.

    Nesse contexto, o planejamento urbano, fundamental para enfrentar crises como as mencionadas- que exigem, por sua própria natureza, ações de longo prazo-, não tem a menor chance de existir e prosperar.

    Enfrentar tal situação não depende de trocar de presidente ou de partido. Vai além, inclusive, da tão necessária e urgente reforma política, exigindo uma reforma mais profunda do Estado brasileiro. Mudar para continuar exatamente como está é o que deseja a coalizão econômico-política que, na prática, governa o país, a mesma que tenta reduzir essa complexa questão a um ódio à presidente Dilma Rousseff e ao Partido dos Trabalhadores. As ruas, felizmente, querem mais.

    raquel rolnik

    Escreveu até junho de 2016

    É arquiteta e urbanista e professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP.

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