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    Raquel Rolnik

    O lugar da moradia popular

    18/05/2015 02h00

    Desde que começou o processo participativo de revisão da lei de zoneamento de São Paulo, algumas associações de moradores têm se manifestado contra a demarcação, em seus bairros, de Zonas Especiais de Interesse Social (Zeis), destinadas à construção de moradias populares. Algo semelhante à mobilização contra a construção de uma estação de metrô em Higienópolis porque isso traria "gente diferenciada" para o bairro –lembram?

    O fato é que construímos cidades partidas, que "exportam" permanentemente os pobres para as periferias, implicando em padrões insustentáveis de mobilidade, entre outras mazelas. Recentemente, sob enorme pressão das urgências habitacionais da cidade, as Zeis foram ampliadas e melhor definidas no novo Plano Diretor. Mas como uma espécie de praga político-cultural maldita, parece que o modelo segregacionista de cidade triunfa, sabotando todas as tentativas de rompê-lo.

    Quando foram incluídas no zoneamento das cidades, nos anos 1980, as Zeis cumpriram o importante papel de tornar visíveis imensas áreas de assentamentos populares que, apesar de já existirem há gerações, eram brancos nos mapas e nas leis.

    Nos anos 1990, além de "reconhecer" e indicar a urbanização e consolidação desses bairros, o instrumento evoluiu para a demarcação de áreas vazias ou subutilizadas, definindo seu uso futuro como Habitação de Interesse Social (HIS), como já era feito com as moradias de alta renda nos bairros jardins ou com áreas destinadas a prédios, comércio etc.

    Em São Paulo, o Plano Diretor de 2002 demarcou tanto as Zeis de "regularização" como as de áreas vazias. De lá para cá, parte das "Zeis de vazios" virou, de fato, moradia popular. Mas sabemos que outra parte foi completamente desvirtuada para outros usos, como é o caso do Templo de Salomão, na zona leste, aprovado na gestão Kassab.

    Com a justificativa de tentar regularizar casos como esse, a prefeitura enviou à Câmara Municipal o PL 157, que, basicamente, dá ao proprietário de um terreno localizado em Zeis a possibilidade de não produzir HIS no local, podendo produzi-la em outra área ou pagar valor correspondente ao Fundo Municipal de Habitação. Assim, ilegalidades ficariam resolvidas, bem como a insatisfação de quem não quer pobre por perto.

    Dois erros graves marcam essa proposta: primeiro, cria-se uma regra de exceção para acolher uma ilegalidade, reiterando um mecanismo clássico -e perverso- da nossa ordem jurídica: as fronteiras móveis entre o legal e o ilegal. Afinal, uma lei includente não aplicada pode ser sabotada por outra que relativiza sua aplicação. Em segundo lugar, ao permitir que as Zeis possam ser trocadas por dinheiro ou terras para que se construa HIS bem longe, desconstitui-se o sentido principal do instrumento, que é garantir bons lugares para a produção de HIS.

    Que moradores que não querem ter vizinhos pobres se mobilizem para debater o tema publicamente nas audiências e espaços de diálogo me parece legítimo, ainda que eu discorde desse ponto de vista. Mas apresentar PL "paralelo", no momento em que a lei de zoneamento está sendo revista, para acertar as irregularidades de alguns, abrindo brechas para outros, reforça práticas conservadoras e segregacionistas que devem, a meu ver, acabar.

    raquel rolnik

    Escreveu até junho de 2016

    É arquiteta e urbanista e professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP.

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