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    Raquel Rolnik

    Licenciamento ambiental: ruim com ele, muito pior sem ele

    04/05/2016 14h08

    A prova concreta de que os processos de licenciamento ambiental para grandes obras são muito frágeis no Brasil é o caso da barragem do Fundão, em Mariana (MG), cujo rompimento, no final do ano passado, nos levou ao maior desastre ambiental da história do nosso país.

    E o que poderíamos esperar do poder público depois desse desastre? Deixar tudo como está, obviamente, não é a saída. Hoje, os processos de licenciamento ambiental são transgredidos por todos os lados.

    As empresas, responsáveis por contratar os estudos de impacto ambiental (EIA), muitas vezes pressionam os técnicos responsáveis por realizá-los e chegam até mesmo a alterar o conteúdo dos relatórios.

    Do outro lado, os próprios governos pressionam para que os relatórios sejam aprovados, uma vez que já decidiram, muito antes da elaboração dos estudos, que vão realizar as obras de qualquer jeito.

    Ou seja, os processos de licenciamento ambiental hoje não servem para decidir se obras ou empreendimentos serão feitos a partir das considerações sobre seus impactos socioambientais, nem sequer para definir diretrizes básicas para os projetos.

    Como não existe independência na elaboração dos estudos de impacto, estes terminam servindo tão somente para apontar quais problemas podem ser mitigados e que compensações devem ser feitas, muitas delas às vezes sem nenhuma relação com os impactos do empreendimento.

    Ainda assim, a regra trifásica –EIA, Licença de Implantação e Licença de Operação–, que em tese deveria servir para verificar se as medidas compensatórias e mitigadoras estão de fato sendo implantadas, é em diversos casos uma ficção: muitos empreendimentos já se encontram em plena operação antes de estas licenças serem expedidas.

    Assim, diante da forma como vem sendo implantado esse modelo, no mínimo esperam-se mudanças no sentido de aperfeiçoar os processos de licenciamento, melhorando a qualidade dos relatórios de impacto, ampliando a participação da sociedade desde a concepção dos projetos, promovendo a articulação entre os diversos órgãos públicos envolvidos e sua capacidade de fiscalização.

    É assustador, porém, ver que as discussões em curso hoje, ao menos no âmbito do legislativo federal, vão completamente na contramão disso tudo.

    Na semana passada, a Comissão de Constituição e Justiça do Senado aprovou a Proposta de Emenda Constitucional 65/2012, do senador Arcir Gurcacz (PDT-RO), que inclui um parágrafo a mais no artigo 225 da Constituição Federal, determinando que basta a apresentação de um estudo prévio de impacto para que a execução da obra seja autorizada, sem que esta possa posteriormente ser suspensa ou cancelada.Na prática, essa PEC simplesmente anula o licenciamento ambiental.

    O Congresso também discute hoje o projeto de lei nº 654/2015, do senador Romero Jucá (PMDB-RR), apresentado no âmbito da chamada "Agenda Brasil", pacote proposto pelo senador Renan Calheiros (PMDB-AL) para enfrentar a crise econômica.

    Esse PL propõe simplificar o licenciamento ambiental para obras de infraestrutura consideradas estratégicas. Isso significa que justamente as obras mais complexas e de maior impacto socioambiental, como usinas, represas, barragens, estradas etc, ficariam praticamente livres do licenciamento.

    Segundo levantamento do Instituto Socioambiental, existem hoje no Congresso Nacional 34 propostas de alteração no licenciamento. Infelizmente, a maior parte dessas iniciativas tem como objetivo e justificativa simplesmente encurtar os prazos.

    Ou seja, o único problema que deputados e senadores enxergam é a demora na aprovação dos licenciamentos. Não tocam em nenhuma das questões que de fato precisam ser enfrentadas. Pior, propõem destruir o pouco que temos hoje, que foi duramente construído ao longo de muitos anos, e isso inclui o aprendizado das próprias empresas para lidar com questões socioambientais, que não pode ser desprezado.

    Assim, fico me perguntando por que, mesmo com casos tão recentes como o desastre de Mariana, que mostram que o licenciamento ambiental precisa ser urgentemente aperfeiçoado, surgem nesse momento propostas que representam tamanho retrocesso?

    Não consigo não pensar no momento de crise política e econômica que vivemos, com um processo de impeachment em curso e investigações de corrupção. E aí percebo que estamos diante de um completo esvaziamento da ideia do espaço da política como aquilo que cuida do bem comum. E então me vem à lembrança o discurso personalista e messiânico de boa parte dos deputados na votação da admissibilidade do impeachment na Câmara Federal.

    O que importa, para estes, é fazer obra rápido, a tempo de inaugurar com o nome da mãe, agradecer a Deus em público, filmar e tirar foto para postar nas redes sociais. Aliás, permitir a inauguração de obras no curso de um mandato aparece como justificativa em um dos projetos de simplificação do licenciamento em tramitação. Não vem ao caso saber se precisamos ou não dessa obra e qual seu efeito na transformação do território e na vida das pessoas.

    Apesar de todos os problemas, o licenciamento ambiental que temos hoje ainda é a única instância no processo de decisão e implantação de grandes transformações do nosso território que exige que as populações atingidas sejam de algum modo informadas e que elabora e publiciza um mínimo de informações sobre as obras e seus impactos.

    O que está sendo proposto desmonta o pouco que temos de mecanismos de controle, afastando ainda mais as possibilidades de enfrentarmos os reais problemas socioambientais de nosso país.

    raquel rolnik

    Escreveu até junho de 2016

    É arquiteta e urbanista e professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP.

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