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    Raul Juste Lores

    O pioneiro Baixo Augusta novaiorquino

    15/05/2013 12h38

    O bordel "Casa de todas as nações" se gabava de ser o mais internacional de Nova York no final do século 19 e início do século 20, com prostitutas de todas as etnias, cores e sotaques.

    Havia inclusive um jogo de pula-sela (ou pula-carniça, tem tanto nome para esse jogo no Brasil) que as moças faziam nuas em recintos fechados para deleitar os frequentadores.
    Nos salões, o can can parisiense era a grande novidade.

    Um cassino vizinho, instalado em uma residência de 1850, com frontão neoclássico, tinha três portões diferentes para enganar a polícia --que batia cartão na entrada, mas sem importunar os frequentadores do espaço ilegal. Policiais tinham um bom trato a zelar.

    O novo delegado do bairro, ao perceber que as gorjetas que recebia de bordéis e cassinos eram muito melhores que as do posto anterior, apelidou o bairro de "Filé Mignon" (the Tenderloin).

    Raul Juste Lores /Folhapress
    O antigo cassino
    O antigo cassino

    Ali, surgiram as primeiras saunas de "entretenimento" da cidade. Ao contrário das localizadas ao sul de Manhattan, com usos terapêuticos ou higiênicos para os imigrantes recém-chegados, elas reuniam homens casados, massagens e aventuras --inclusive gays.

    Durante pelo menos 40 anos, a área apelidada de Tenderloin, entre as ruas 26 e 42 em Manhattan, ao norte do hoje popular Madison Square Park, foi o epicentro da prostituição, dos jogos de azar e da música pop de Nova York. No final de seu auge, nos anos 20, essa efervescência se mudaria para a Times Square.

    Havia mistura de brancos, imigrantes e de uma grande população negra --à época, o Harlem ainda era habitado quase exclusivamente por brancos.

    MUSICA POP

    Foi nessa vizinhança animada, na rua 28, entre a Quinta e a Sexta Avenidas, que se instalaram por volta de 1885 diversas editoras musicais, aproveitando as leis de direitos autorais mais rígidas. Antes da criação da tevê ou do rádio e da popularização dos gramofones, um grande entretenimento das famílias era tocar ao piano na sala as partituras das músicas da moda, que eram lançadas, vendidas e promovidas por tais editoras, as mães das grandes gravadoras e avós do iTunes.

    As estratégias para que essas músicas vendessem muito criaram um grande negócio --a indústria da música pop.

    Valia pagar bem a cantores e pianistas famosos que repetissem à exaustão a nova música em seus shows ou que se apresentassem na própria rua ou nas vitrines das editoras, que tinham entradas envidraçadas e janelões.

    As músicas já tinham que ser chicletes --no futuro, as editoras virariam gravadoras e fariam o mesmo assédio às rádios.

    Compositores como Irving Berlin criaram suas próprias editoras ali. Vários músicos começaram a compor para tais empresas -de George Gershwin a Cole Porter, ainda que os dois nunca tenham trabalhado na rua.

    Na mesma rua 28, entre a Sexta e a Sétima avenidas, um predinho avermelhado foi a primeira casa de shows de músicos negros da cidade, muito antes do surgimento da cena musical do Harlem --nessa parte da rua, ao contrário do resto da cidade de então, negros e brancos trabalhavam juntos no que viraria o showbizz-- era chamada de "Broadway africana".

    Raul Juste Lores /Folhapress
    O beco das Panelas
    O beco das Panelas

    Com o sucesso das empresas (todas com cara e jeito de fundo de quintal), a rua virou uma cacofonia de baladas românticas, marchinhas e do prenúncio do jazz e do blue. Com tanto pianista tocando ao mesmo tempo de forma estridente a rua ganhou o nome de "Tin pan alley", ou o beco das panelas -o "Vamo batê-lata" nasceu ali e os tímpanos mais sensíveis evitavam o fuzuê.

    Essa mistura de bordeis, cassinos, teatros de vaudeville, saunas, muitos artistas, boêmios e trambiqueiros construiu um legado fundamental do que é Nova York para todos nós, terra de energia, criatividade e mistura, mesmo que apenas um punhado de construções modestas e pouco bem preservadas contem essa história.

    Parte do bairro Filé Mignon, cortado por uma ferrovia elevada na Sexta Avenida, que afugentava famílias de maiores posses e mantinha os preços do m2 baixos, começou a ser transformada na primeira década do século passado.

    Usando a desculpa da moral e dos bons costumes, do excesso do barulho ou das condições insalubres, vários lugares foram fechados e outros tiveram que se mudar dali pela alta nos preços do aluguel. Pouco depois, o mercado imobiliário conseguiu construir a primeira ferroviária Penn Station ali e diversos grandes prédios a seu redor -os boêmios que transformaram a área não eram mais necessários.

    Raul Juste Lores /Folhapress
    A caminhada de Jane
    A caminhada de Jane
    • Conheci parte dessa história na semana passada, ao participar de uma das dezenas de "Jane's Walks" por 100 cidades do mundo. Essas caminhadas são normalmente lideradas por aficionados, historiadores e urbanistas, no início de maio, de forma gratuita aos participantes, em homenagem a Jane Jacobs. Foi ela que, em 1950, começou a brigar por uma cidade que favorecesse o pedestre, e não o carro, que promovesse a mistura de usos em bairros e quateirões e que combateu o urbanismo então em voga dos modernistas. Jornalista e ativista, é considerada uma das maiores responsáveis pelo movimento que impediu a construção de minhocões em Manhattan.
    • O passeio Jane Jacobs pelo "Filé Mignon" de Nova York foi organizado pelo escritor David Freeland, que escreveu o otimo livro "Automats, Taxi dances and vaudeville", que tem como subtitulo "Excavando os locais de lazer perdidos em Manhattan" e narra a história do "Filé Mignon" e do Beco das Panelas. O que uma caminhada não faz para aprendermos a história das nossas cidades. E ver como a história se repete.

    @rauljustelores

    raul juste lores

    É repórter especial. Já foi correspondente em Washington, Nova York, Pequim e Buenos Aires, e editor de 'Mercado'. Escreve aos domingos, a cada duas semanas.

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