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    Herói da resistência: mais de 30 anos com HIV

    DE SÃO PAULO

    05/08/2014 03h00

    Osmar Gallo, 61, passou metade da vida na condição de portador de HIV. Um dos primeiros brasileiros diagnosticados com Aids, ele é mais do que sobrevivente. A "sentença de morte" inicial não só não se confirmou, como ele hoje está certo de que ela não estará em seu atestado de óbito, quando sua hora chegar.

    Desde 1983/1984, quando surgiram os primeiros sintomas de uma doença que ninguém sabia o que era, ele foi cobaia de experimentos e se beneficiou da distribuição gratuita do coquetel anti-HIV para os portadores da doença.

    As drogas resultaram numa qualidade de vida que permitiu que ele se aposentasse como bancário "por tempo de serviço", em 2002, cursar faculdade de teologia e virar professor de grego e hebraico. Além de ter visto os três filhos, hoje com 29, 28 e 15 anos, crescerem saudáveis.

    Gallo aprendeu a conviver com um dos efeitos colaterais do coquetel -o acúmulo de gordura em algumas partes do corpo. "No meu caso é na barriga, relativamente discreto, mas sempre incomoda."

    Para o brasileiro (que tem o mesmo sobrenome do cientista americano Robert Gallo, codescobridor do vírus da Aids, ao lado do francês Luc Montagnier), a cura da doença esbarra em um senão: "Creio que até já exista, mas é mais lucrativo manter os doentes dependentes dos medicamentos de controle".

    De acordo com o último relatório da Unaids, a agência da ONU dedicada à luta contra a Aids, o número de pessoas infectadas por HIV está estabilizado em 35 milhões em todo o mundo. A epidemia já matou 39 milhões das 78 milhões de pessoas afetadas desde que começou nos anos 1980.

    *

    A seguir, o depoimento desse "herói da resistência", um dos 1,6 milhão de pessoas que vivem com HIV na América Latina:

    "Os primeiros sintomas apareceram em 1983/1984. Estava muito magro e cheio de gânglios pelo corpo. Achavam que era câncer. Fiz todo tipo de exame. Tudo negativo.

    Meu médico chegou a dizer que era psicológico. Quando surgiu um novo exame nos Estados Unidos, ele sugeriu que eu fizesse.

    Meu sangue foi mandado pra lá. O plano de saúde cobriu o exame, que custava 17 milhões de cruzeiros, o equivalente ao preço de uma casa. O resultado saiu em 15 de outubro de 1986. Deu positivo: presença do anticorpo do antivírus HTLV 3.

    O médico dizia que havia 70% de chance de o resultado estar errado, afinal eu não era homossexual, não usava droga nem era promíscuo.

    Sou aidético antes de a doença ter um nome e de o vírus da Aids ter sido descoberto. O primeiro teste de HIV só fiz no final de 1987.

    Ao sair do consultório com um prognóstico de um ano de vida, subi no viaduto perto do hospital para me jogar. Ali, ouvi a voz de Deus, acredite ou não: 'Desce que você vai ser curado'.

    Fiquei um ano sem contar para ninguém. Minha mulher estava grávida do nosso segundo filho. Conviver em silêncio com aquele diagnóstico era morrer a cada dia.

    Eu trabalhava como caixa do Banco do Brasil em São Paulo. Nunca faltei nem tirei licença. Quando saiu a primeira reportagem sobre uma doença desconhecida na 'Veja', meu chefe brincou: 'Vai ver Gallo tá com Aids'.

    Comecei a chorar e contei pra todos naquele momento.

    A primeira reação foi de espanto. Em seguida, manifestações de solidariedade e de preconceito. Alguns foram incríveis, mas os preconceituosos diziam: 'Usa só um dos banheiros'.

    As reações eram de autodefesa. Havia também aquela coisa nas entrelinhas de que eu só podia ser homossexual. A pior coisa que ouvi foi justo de um médico. Logo no início da consulta, o tal especialista disse:
    'Você fica dando o rabo por aí e vem dizer que pegou isso doando sangue'.

    Tenho certeza de que fui contaminado ao doar sangue. Em 1982, o hospital do hemofílico montou um ambulatório dentro da agência que eu trabalhava no Rio de Janeiro. Tempos depois, soube que o colega que doou antes de mim morreu de Aids.

    O tal médico particular, que foi a figura mais preconceituosa que encontrei em todos esses anos, me pediu que fizesse um exame para ver se eu era homossexual. Quando saiu o resultado da radiografia do intestino e do ânus, que não mostrava lesões, coloquei na mesa dele: 'Então, doutor, sou homossexual?'

    Ele respondeu: 'Não, o exame é negativo'.

    Eu era só osso e gânglio, mas acertei um soco no queixo dele, que ameaçou chamar a polícia. Eu disse que podia mandar me prender, mas que ele iria perder o registro profissional quando o denunciasse. Nunca mais vi a cara do sujeito.

    Minha mulher e meus três filhos fizeram o exame. Todos negativo. Tomo cuidado para não contaminá-la. Sexo só com preservativo. Entrei para um grupo de apoio da Escola Paulista de Medicina. Éramos umas 50 pessoas.

    Vi muita gente morrer de Aids ao longo desses anos. Do meu grupo inicial, só eu estou vivo. Fui cobaia do AZT, que o banco mandava trazer dos Estados Unidos.

    Comecei a ganhar peso. Cheguei a pesar 49 kg. Hoje, peso 74 Kg. Tenho 1,72 m. Não tive doenças oportunistas. Eu me cuido. Há pelo menos 30 anos sobrevivo com Aids. A doença serviu de incentivo para trabalhar mais e voltar a estudar. Fiz teologia e sou professor de grego e hebraico. Eu me aposentei do banco por tempo de serviço.

    Não tenho rotina de doente. Nunca senti náusea ou outros efeitos colaterais por conta do coquetel. Cheguei a tomar 18 comprimidos três vezes ao dia, 54 ao todo. Hoje tomo cinco, uma vez por dia. Houve muitos avanços. Hoje, tenho qualidade de vida. A carga viral no meu organismo está zerada.

    Deus usa a medicina e os médicos. Tenho certeza de que não vou morrer de Aids. Se tivesse que ter morrido dessa doença, já tinha."

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    por Eliane Trindade

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    É editora do Prêmio Empreendedor Social. Aqui, mostra personagens e fatos dos dois extremos da pirâmide social. Escreve às terças, a cada duas semanas.

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