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    Rede Social - Eliane Trindade

    Ensaio sobre a falta d'água

    21/10/2014 03h00

    Começou a faltar água nas redes sociais. Embora a crise de abastecimento ainda não tenha sido alçada ao "trending topics" do Twitter, o assunto pinga insistentemente na minha timeline, sinal inequívoco de uma emergência que autoridades teimam em não dimensionar.

    Enquanto isso, os mensageiros do "apocalipse hídrico" inundam o Instagram com imagens de caminhões pipas disputando "curtidas" com os looks do dia. Sem falar em tuítes irados, nos quais a revolta pelas torneiras secas nem sempre cabe em 140 caracteres do Twitter e extrapola para posts quilométricos no Facebook.

    Pesquisa Datafolha divulgada nesta segunda-feira (20) revela que seis em cada dez paulistanos sofreram com falta d'água no último mês. O levantamento quantitativo ganha eco em vozes indistintas nas redes sociais, vindas dos quatro cantos: da periferia (sempre a mais atingida) ao centro, passando por zonas nobres da capital.

    CALIFADO SEM ÁGUA

    O escritor Fernando Morais, morador da zona oeste, deu o alerta na quarta-feira passada aos seus 3.000 seguidores no Facebook. "Hoje, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, o senador Aloysio Nunes e eu vamos ficar sem banho. Acabou a água no califado de Higienópolis", postou, referindo-se a vizinhos ilustres de bairro.

    A informação foi compartilhada por 300 pessoas que propagavam a chiadeira. Às 20h07, Morais voltou ao Facebook para informar: "Vou jantar limpinho. A água voltou ao califado".

    A seca sem precedentes e suas consequências começaram a ser vividas também em tempo real. Enquanto do front de suas torneiras sem água, moradores vão dando o relato do drama on-line, a Sabesp, empresa de saneamento de São Paulo, ainda se vale de recursos, digamos, pré-internet para se comunicar com a população amedrontada e desinformada.

    Na semana passada, me deparei com um prospecto da Sabesp, colocado no vão da porta de entrada de um restaurante no centro, endereçado aos "clientes". "Nas últimas semanas as temperaturas na Grande São Paulo estiveram bem acima do normal", inicia o texto, que evoca São Pedro em seguida: "Não ocorreram as chuvas esperadas".

    Ok, percebemos. E então? Informam que "a Sabesp está realizando todas as ações possíveis para não interromper o abastecimento de água aos 18 milhões de habitantes". Bom saber.

    Termina com um apelo: "Necessitamos de sua ajuda para evitar que a água acabe... Colabore, economize". Só não diz como o "cliente" pode fazer a sua parte.

    NA VIDA REAL

    De volta ao Facebook, um amigo jornalista escrevia direto da vida real: "Hoje, vi dois caras brigando. Um lavava a calçada, outro foi tomar satisfações. Foram aos socos. Água, o novo ouro". Uma ex-colega de trabalho, minutos depois, narrava direto do salão de beleza: "Manicure voltando pra casa #chateada porque falta água e já não pode trabalhar".

    Mais uma rolagem no mouse, mais um informe da Pauliceia e arredores transformados em sertão: "Itu, Campinas, Atibaia, Piracicaba, Nova Odessa, São Paulo e região... E a Sabesp e o governo do Estado vão continuar dizendo que não há suspensão no abastecimento de água".

    O tom das relatos foi ganhando em indignação: "A Sabesp mente. O governador de São Paulo mente. Não sei onde eles estão contrabandeando água para falar tanta mentira com cara lavada. Mas agora a mentira ficou evidente: boa parte da população está sem água... A seca estava prevista. O problema foi a (má) gestão dos recursos hídricos do Estado e a privatização da Sabesp... Eles negam tudo. É triste. É grave. É pior do que ter que tomar banho de caneca", escreveu uma psicanalista do Alto da Lapa.

    As reclamações vêm dos Jardins, Perdizes, Morumbi, Santana e bairros periféricos, todos convertidos, por algumas horas, em caatinga urbana.

    CARRO PIPA

    Sinal dos tempos: a câmara do celular de uma socialite, que circula em seu blindado pelos Jardins, flagra um caminhão pipa, símbolo do flagelo da seca. Minutos depois, ela deixa vazar sua indignação na legenda da foto no Instagram: "Acabou a água! Muito sério a cidade de São Paulo estar passando por isso, vamos tomar consciência e economizar, pois só vai piorar. Foram várias caminhões como esse passando pelos Jardins para abastecer os restaurantes hoje à tarde. O que acontece com quem não tem a mesma opção?". E encerra o assunto com as hashtags: #acabouaeleiçãoeaaguatambém e #faltadeplanajamento.

    Alguma coisa acontece no coração de paulistanos e forasteiros quando veem um caminhão pipa em uma das esquinas de Sampa, trafegando em novo pesadelo urbano: a falta de água no mar de concreto.

    Qualquer exercício de futurologia é arriscado. Afinal o que significa viver em uma metrópole de 18 milhões de habitantes sem água ou com racionamento por um longo período? E a questão sanitária? Vai ser um salve-se quem puder ou um pague puder pagar? Será preciso evacuar áreas da cidade? As escolas vão fechar? As fábricas vão parar ou funcionarão em turnos reduzidos?

    NEGATIVAS

    Como "cliente", liguei para a Sabesp, vasculhei o site. Respostas vagas e negativas. "É falsa a informação de que a água pode acabar em 27 de outubro [um dia depois do segundo turno das eleições presidenciais]. Reportagens equivocadas foram divulgadas em veículos de comunicação e nas redes sociais. A Sabesp adota medidas necessárias para garantir o fornecimento à população!"

    Volto ao Facebook. Outra amiga acaba de postar: "Acabou a água no prédio. Chamaram o carro pipa: R$ 1.000. A ordem é banho de cinco minutos e está proibido máquina de lavar". O dono de uma editora também faz relato semelhante. "Acabou a água Caminhão pipa a caminho. Preparemo-nos para o pior."

    Nessa linha, foi inspirador o post de Astrid Fontenelle, apresentadora do"Saia Justa"e do "Chegadas e Partidas", do GNT, no sábado (18): "Preocupadíssima, e faz tempo, com a crise da água. Tudo o que leio leva a uma única possibilidade: mudança de comportamento! Ontem, aqui em casa faltou água por conta de um encanamento do prédio que precisava de manutenção. Gabriel, meu filho, estava todo ensaboado. Sabe quanto gastamos de água para finalizar o banho? Meio balde? Se estivéssemos no chuveiro quantos litros de água iriam ralo abaixo?".

    Astrid relata a experiência de colocar um balde no chuveiro enquanto espera a água esquentar. "Resultado? 14 litros de água limpa que iriam ralo abaixo. O que fiz com a água? Já foram duas descargas completas e ainda tenho."

    DE BALDE EM BALDE

    Neste fim de semana, segui a dica de Astrid e comecei a "estocar" a água que se perdia enquanto esperava o aquecimento do chuveiro. A banheira virou depósito e passei a usar aquela água para dar descarga. É uma gota no oceano.

    Estou entre os quatro dos seis paulistanos que ainda não foram atingidos pela falta d'água. Pergunto ao zelador do meu prédio como está a situação. "Por aqui tá tudo certo. Lá em casa também não faltou ainda", diz seu Antônio, piauiense que veio para São Paulo fugindo da seca há três décadas.

    "Eu sei o que é isso", me responde. "O governo tá brincando não é com fogo, não. É com água. É muito pior." Sabedoria de sertanejo que não quer ser tratado como "cliente" da Sabesp, mas como cidadão. Assim como ele, eu também espero medidas que parecem fadadas a serem tomadas só após as urnas secarem.

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    por Eliane Trindade

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    É editora do Prêmio Empreendedor Social. Aqui, mostra personagens e fatos dos dois extremos da pirâmide social. Escreve às terças, a cada duas semanas.

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