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    Aconteceu com dona Irene: aquele carocinho era câncer de mama

    28/10/2014 02h00

    Jairo Rodrigues provou que santo de casa pode fazer milagre. No pele de um cachorro, um cientista ou dando vida a bonecos na peça "Teatro Colar da Vida", o ator e diretor fala para alunos da 3ª e 4ª séries da rede pública sobre câncer de mama.

    "É um modo de quebrar o tabu sobre a doença e fazer a nossa mensagem chegar às mulheres daquelas famílias para que elas façam o autoexame e a mamografia", explica o ator.

    Convidado pelo Instituto Se Toque –ONG que atua na promoção da saúde da mulher para escrever o texto do espetáculo educativo–, Jairo se viu também como anjo da guarda no próprio quintal. A exemplo do que já sugeriu para mais de 3.500 crianças, ele inquiriu dona Irene: "Mãe, a senhora já fez mamografia?".

    A resposta negativa da paulista aposentada a fez encarar o descuido com o próprio corpo e, por consequência, com a própria saúde. "Naquele dia, eu apalpei o meu seio e perto do mamilo vi um carocinho bem pequenininho", conta ela, hoje com 75 anos, sobre o autoexame feito em novembro de 2011.

    No dia seguinte, deixou o sobrado onde vive com o filho em Imirim, zona norte de São Paulo, para tentar uma consulta no hospital Pérola Byington, centro de referência da saúde da mulher, no outro extremo da capital.

    Cruzou a cidade sozinha e encarou o bicho-papão. Dez dias depois de se submeter à mamografia, foi buscar o resultado. "O médico falou na bucha: 'A senhora tá com câncer'."

    A data e o diagnóstico são inesquecíveis: 6 de dezembro, dia do seu aniversário. "Olha que presentão!", brinca ela, na perspectiva de quem acredita estar curada de um câncer detectado precocemente.

    ANJO DA GUARDA

    "O espeto não era de pau", respira aliviado o filho de 54 anos, que mora com a mãe aposentada. Jairo fez o papel de "ferreiro" e de "anjo da guarda" da mãe. "A nossa história mostra bem que temos que acabar com essa cultura de que não acontece com a gente", diz ele.

    O ator hoje encena uma realidade que superou em casa e pode transmitir também esperança. "No caso da minha mãe, o caroço era de milímetros e a chance de cura, grande", diz. "Ela estava ampara em um hospital de referência, mas ainda assim, foi traumático. Quando a levava para quimioterapia, vi histórias muito tristes. Meninas novas que haviam perdido os dois seios. Conheci uma diarista que ia trabalhar o dia inteiro depois de passar pelo tratamento."

    Dona Irene superou três etapas –cirurgia, quimio e radioterapia– para se livrar do mal que é realidade na vida de 52 a cada 100 mil mulheres no Brasil. O Ministério da Saúde estima 57 mil novos casos de câncer de mama a cada ano no país.

    "Não dá para esperar passar o Natal?", dizia dona Irene, tentando negociar com os médicos a data da cirurgia. Não deu. Foi operada para a retirada de um quadrante da mama em 19 de dezembro. Três dias depois, deixava o hospital a tempo de passar a ceia com a família.

    O DIABO DA QUIMIOTERAPIA

    O Ano Novo chegou com a perspectiva de enfrentar "o diabo da quimioterapia". "A primeira não deu reação. Da segunda em diante, peguei nojo de tudo, sentia muito enjoo, parecia uma mulher grávida. Doía as penas, costas, braços. Mas aguentei firme", recorda-se.

    Teve ainda pela frente 30 sessões de radioterapia. "Ia todo dia na Santa Casa. Era menos pesado que a quimio, mas é ruim. A rádio era numa sala gelada, queimava a pele. Era uma tortura. Paguei todos os meus pecados."

    É o máximo de lamento que se ouve da boca de dona Irene. "Curei um câncer, não tenho mais aquele caroço. É isso que importa." Agradece a sorte de estar viva. "Uma das três mulheres que estavam internada comigo quando fiz a cirurgia morreu logo na minha primeira noite. Era nova, bonita, pés e mãos benfeitas. Tiraram os dois seios dela. Quando acordei, já tinham tirado o corpo dela do quarto."

    Apesar do recado claro, de que câncer de mama quando detectado em estado avançado pode matar, Irene seguiu otimista. "Sempre fui. Não fico pensando bobagem. O que é meu vem pra mim. O que eu tenho de passar, eu vou passar. Cada um segue o seu pedaço."

    E nada de esconder a doença. "Todo mundo sabe. Uma vizinha diz que não vai fazer o exame, porque tem medo de descobrir um câncer. É aí que mora o perigo."

    TUDO PELO SUS

    Dona Irene não aceita desculpas. Nem a falta de um plano de saúde. Ela parou de pagar o seguro médico há alguns anos, quando a conta cada vez mais cara deixou de caber no seu orçamento. "Quando passou para R$ 1.000 não paguei mais. Pego meu cartão do SUS e vou para hospital público. Todo mundo vai morrer mesmo. Ali ou em um Einstein [Hospital Israelita, privado] da vida. Às vezes, o rico morre até mais depressa."

    Não se considera pobre. "Sou remediada. Se quiser comer camarão, eu posso." A aposentadoria de um salário mínimo é complementada com a renda de duas casinhas alugadas. "Trabalhei muito na vida, mas tenho onde me esconder, moro em um lugar bom", diz ela, orgulhosa do sobrado, da sala grande.

    Atualmente, vende caixinha de joias, mas já negociou de tudo na vida. "Se me der pacote de estrume, eu vendo. Nasci com esse dom. Não sou mulher de ficar limpando casa. Sou do comércio."

    Aos 13 anos, Irene estreou como balconista de loja, mas lembra mesmo com saudade da época em que ajudava o pai no circo. A filha de Zé Pavão, –o violeiro José Marciano de Oliveira, morto em 1975, que fazia dupla com Nhô Rosa– ficava na bilheteria controlando os ingressos. "Mas naquela tempo dupla caipira não fazia sucesso", lamenta. "Metade do cachê ia para o dono do circo."

    CORRER ATRÁS

    Logo, Irene deixou o ambiente circense para pegar no batente e ajudar a compor a renda familiar. Estudou até a 5ª série. "Naquele tempo, era o que filho de pobre podia ter. Não é como hoje."

    Para ela, o país melhorou também no acesso à saúde. É testemunha disso diante de todo o seu tratamento gratuito pelo SUS. "Procurei o hospital e fui atendida no mesmo dia. Fui muito bem tratada. Não tenho do que reclamar do serviço público. Só não se cuida, se a mulher for relaxada."

    Em pleno Outubro Rosa, mês dedicado à conscientização sobre o câncer de mama, dona Irene faz questão de enfatizar: "A gente não pode deixar passar uma oportunidade de cuidar de si mesma. Deu tudo certo pra mim". E dá um conselho prático de paciente do SUS: "É só ter paciência, levantar cedo e ir atrás".

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    por Eliane Trindade

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    É editora do Prêmio Empreendedor Social. Aqui, mostra personagens e fatos dos dois extremos da pirâmide social. Escreve às terças, a cada duas semanas.

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