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    Índio quer diploma

    11/11/2014 03h00

    Não existe palavra para definir a futura profissão de Edegar Martinez em sua língua materna. Índio guarani do ramo avá, ele pretende pendurar o diploma de advogado na parede da casa de madeira da família, localizada dentro da reserva Ocoy, em São Miguel do Iguaçu (PR).

    Edegar está no segundo semestre do curso de direito da Unioeste (Universidade Estadual do Oeste do Paraná). Daqui a quatro anos, seu canudo vai se juntar ao de pedagogia conquistado pela mãe, Elvira, no ano passado, e o do pai, Luiz, 40, que está no último ano de administração de empresas na Uniguaçu, faculdade particular onde estuda como bolsista.

    Aos 23 anos -casado desde os 18 e pai de uma garotinha de dois anos-, o universitário de origem indígena quer mais que um diploma. "O direito é uma ferramenta para proteger minha cultura e para resolver questões sociais importantes que afetam minha comunidade", diz ele, português pausado e correto.

    A língua portuguesa ainda é uma barreira a ser superada. Edegar entrou na faculdade se valendo da lei das cotas. "É um sistema muito criticado, mas era a única forma de um indígena como eu conquistar uma vaga", afirma. "Não é que eu não tenha capacidade, mas tenho dificuldades que os outros estudantes não têm."

    Uma delas é dominar o "juridiquês". "É muito difícil eu conseguir me expressar corretamente na linguagem formal dos advogados." No início, cada texto jurídico a ser decifrado era uma empreitada. "A leitura era muito lenta. Eu tinha que pesquisar no dicionário praticamente cada palavra. Mas, aos poucos, vamos quebrando a formalidade do direito também."

    PLANOS PARA O FUTURO

    No primeiro semestre, o calouro foi reprovado em direito constitucional e sociologia jurídica. "Estou refazendo as disciplinas e dessa vez vou passar", diz, confiante. Para ele, a matéria mais fácil foi psicologia jurídica. Acha a área criminal a mais interessante. E começa a desenhar o futuro. "Meu sonho é fazer concurso para a Polícia Federal."

    O jovem guarani diz que não sentiu preconceito no ambiente universitário. "Minha adaptação foi tranquila. Meus colegas me ajudam muito. Na faculdade, tem uma consciência maior e respeitam as diferenças. Eu também respeito a todos."

    Até a 4ª série do ensino fundamental, Edegar estudou na escola da aldeia, onde os professores e alunos falavam guarani em sala de aula. Da 5ª até a 8ª séries, ele teve que se vestir para a guerra para não desistir da educação formal. "Fui estudar na cidade, as aulas eram em português e tinha que usar uniforme", lembra Edegar. Bullying era regra. "Eu sofria muito. Éramos crianças e aí faziam muitas brincadeiras."

    A maioria dos colegas da aldeia desistiu. "Só eu e mais dois nos incentivamos e ficamos até o final." E conclui, com sorriso vitorioso: "Se não bater na gente nem matar, vamos continuar os estudos".

    VESTIBULAR

    Quando chegou a hora do vestibular, nem tentou entrar numa universidade federal. A concorrência era o dobro. Optou pela universidade estadual e também pública, a 60 km da aldeia. Para quem pensa que é moleza, ele dá a medida da peneira: "Eram seis vagas de cota e havia 500 candidatos inscritos".

    O que estava em jogo era o "saber". Valor que os Martinez dizem ter aprendido com a matriarca analfabeta. "Minha mãe dizia para a gente estudar para não passar pelo que ela passou", conta Luiz. É com pesar que conta que a anciã da tribo morreu há seis meses, sem ver a coleção de diplomas de curso superior da família crescer.

    A avó e os pais de Edegar nasceram no Paraguai e atravessaram a fronteira há mais de três décadas para se juntar aos parentes da mesma etnia que viviam do lado de cá. Como povos indígenas que não reconhecem os limites territoriais dos colonizadores, os Martinez se fixaram em terras brasileiras e deixaram de ser nômades.

    Edegar e os dois irmãos nasceram no Paraná, na aldeia à beira do lago que formou a usina hidrelétrica de Itaipu.

    PROFESSORES

    A nova geração continua falando guarani em casa.

    O futuro advogado é professor da língua materna, assim com o pai, enquanto a mãe, após o diploma superior, virou vice-diretora da escola da aldeia. É a chefe do marido, que trabalha na secretaria.

    No ultimo período do curso de administração, aos 40 anos, Luiz sabe que também está quebrando barreiras. "É muita evolução, adquiri muitos conhecimentos e a consciência dos meus direitos. Agora entendo de papelada."

    Talvez em função da idade, conta ter tido mais dificuldade para se enturmar na faculdade. "Naquele ambiente pouca gente entende a realidade indígena. Generalizam as coisas, os conteúdos."

    Seu universo de estudo era muito distante. "Tudo era relacionado à cidade e ao funcionamento das empresas. Não estava acostumado. Mas agora vou conseguir aplicar meus conhecimentos para ajudar minha comunidade."

    O futuro administrador de empresa ou da aldeia olha longe. "Não existe mais natureza como antes, então índio tem que estudar. Tem que mudar a mentalidade do branco também", diz o guarani. "Somos pessoas com sentimentos e projetos."

    O fato de estar de jaqueta de couro, usar tênis e ter carros são motivo de orgulho. E rebate as críticas de que é um processo inexorável de "aculturamento", de deixar de ser índio. "Essa visão é um equívoco de quem não conhece a realidade e a nossa cultura."

    CRÉDITO NA PRAÇA

    Os estudos garantem hoje aos Martinez uma renda mensal familiar em torno de R$ 5.000. O primeiro carro foi adquirido há seis anos. "Era um bem simples. Fui melhorando", diz Luiz. O filho tem uma moto. "Estamos com crédito na praça", brinca o pai, que usa o veículo para vencer os 20 km que separam a aldeia da faculdade. "Sem carro não teria como estudar á noite."

    Luiz quis fazer direito, mas não conseguiu ingressar na faculdade. "A dificuldade econômica na época me fez desistir, mas convenci meu filho a tentar." E orgulha-se da conquista do primogênito e já incute na filha caçula, Elma, 14, o mesmo desejo. "Quero ser advogada", diz a menina de longos cabelos negros e sorriso perfeito.

    Peço ao pai, professor de guarani, para traduzir a futuro profissão de dois de seus três filhos. "A palavra advogado não tem similar na nossa língua. Só se for por associação. Não dá para traduzir diretamente", explica. Mas acaba fazendo um exercício linguístico para descrever o que o seu primogênito será daqui a quatro anos. Luiz faz, então, a junção de dois conceitos para criar um vocábulo que expressa tanto "quem ajuda" quanto "quem defende".

    "Pytyvõhára", escreve ele. Uma nova palavra que passará a integrar o dicionário e a vida na aldeia Ocoy. "Eu tenho muito orgulho de falar, escrever e ensinar guarani", diz Edegar, o futuro advogado.

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    por Eliane Trindade

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    É editora do Prêmio Empreendedor Social. Aqui, mostra personagens e fatos dos dois extremos da pirâmide social. Escreve às terças, a cada duas semanas.

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