• Colunistas

    Monday, 29-Apr-2024 12:58:49 -03
    Rede Social - Eliane Trindade

    O pianista na sala de espera do hospital

    27/01/2015 03h00

    Arnon Grunkraut faz um concerto de três horas por semana. É de jaleco que ele se senta ao piano para uma plateia de pacientes, médicos, enfermeiros, acompanhantes e visitantes que passam pela sua sala da espetáculo improvisada. Trata-se do átrio do hospital Samaritano, onde o também chef de cozinha é voluntário há quase dois anos.

    Toda quinta-feira ele faz tudo sempre igual. Senta-se na banqueta do antigo piano francês de cauda e dedilha do russo Tchaikovsky ao italiano Andrea Bocelli, passando por Roberto Carlos. "É a chance de tirar sangue ao som de um sucesso de Elton John ao vivo," brinca o senhor bonachão de 59 anos.

    Ele teve a ideia de se apresentar no hospital a caminho do laboratório para fazer exames rotineiros. "Eu vi o piano aqui abandonado e comecei a tocar, mas estava desafinado, todo riscado", recorda-se. "Alguém riscou o instrumento inteiro. Que dor!"

    Arnon foi até o serviço de hospitalidade se informar sobre a possibilidade de o piano ser reformado e de ele assumir os teclados para entreter os pacientes no vaivém da unidade de Higienópolis, bairro onde mora.

    "Toquei três musicas e me disseram que eu estava aprovado", conta, enquanto dá os primeiros acordes de "Como É Grande o Meu Amor por Você", sucesso de Roberto Carlos, pedido de uma das recepcionistas.

    Emendou outras três canções do Rei naquela tarde. O concerto vai das 13 às 16h. Acaba de contabilizar a centésima apresentação naquele ambiente hospitalar. "Toco direto, não paro nem para tomar água ou ir ao banheiro."

    MÚSICA ABENÇOADA

    "O senhor vem toda semana?", pergunta uma senhora, que aguarda ser chamada para uma consulta com um clínico geral. sentada nos confortáveis sofás do espaço, ao lado do instrumento. Uma outra, mais cedo, pediu que ele tocasse algo de Chopin. Arnon prometeu caprichar nos noturnos na semana seguinte. Minutos antes, ele foi elogiado por uma religiosa. "Deus abençoe a sua música."

    Bem em frente ao piano, os clientes do café aproveitam a música sem precisar pagar couvert artístico. "É uma forma de acalmar as pessoas", diz o pianista.

    Foi com esse argumento simples e direto que Arnon convenceu o setor de hospitalidade e a chefia de voluntariado do Samaritano. "Imaginei levar um pouco de música para todo mundo que precisa", diz ele.

    "Para quem está esperando ser atendido na recepção, para o cara que vai ser picado de agulha mais adiante ou um outro que está sofrendo do coração, em um quarto do primeiro andar, ou aguardando para colocar um stent [pequena prótese em formato de tubo que é inserida no interior de uma artéria para evitar obstrução dos vasos]."

    PAIXÃO DE MENINO

    Arnon dedilha mais uma canção suave e diz "que o som vai passando por debaixo da porta e todos podem ouvi-lo." O pianista voluntário fala com a paixão do menino que aos 9 anos se apaixonou pelo piano de armário, um Bluthner alemão, que o avô presenteara sua mãe.

    Seus dois irmãos mais velhos já haviam abandonado as aulas, mas o caçula não só persistiu como deu cabo do instrumento de tanto uso e abuso. "Ele era lindo, mas eu o destruí. Quando fiz 18 anos, eu tirei a parte de cima e a de baixo e coloquei um som. Tinha um estúdio e tocava com os amigos", conta Arnon. "Do piano de armário só sobraram as cordas."

    Quando completou 30 anos, convenceu o pai a presenteá-lo com um instrumento novo. "Naquela época, já tocava em um certo nível e pedi um piano de cauda." Foi até a loja pesquisar preços. "O que eu queria custava 25 paus, o preço de um fusquinha." Levou um ano paquerando os modelos em exibição, até que o pai finalmente comprou para ele um imponente Fritz Dobbert de cauda. "Um dos últimos com máquina alemã fabricado no Brasil", orgulha-se o proprietário.

    O piano hoje enfeita a sala da casa de campo da família em Atibaia (SP). "Quando abro as janelas e os pássaros entram a gente toca junto. É maravilhoso", diz o pianista diletante, que vem tocando para plateias especiais.

    LAR DE IDOSOS

    Além dos pacientes do Samaritano, Arnon também toca em um lar de idosos mantido pelo Hospital Albert Einstein. "Eles têm um piano caindo aos pedaços. Vou tocar lá a cada 15 dias", explica ele, que já reuniu até 60 anciãos nos saraus.

    "A maioria tem mais de 80 anos, muitos são cadeirantes. Eles são muito bem tratados na instituição. Estão quase surdos, muitos têm Mal de Alzheimer. São pais e mães esquecidos por filhos que não lhes dão a menor bola, uma tragédia. A música é uma forma de amenizar o abandono."

    Os concertos vespertinos como voluntário se casam bem com a agenda de chef de cozinha free-lancer. "Trabalho pra mim mesmo, fazendo festas, jantares. Na minha casa ou na do cliente. Para 20 pessoas ou para 500."
    Como a maioria dos contratos são para jantares à noite, ele separou algumas tardes para as apresentações de piano no hospital ou em asilos. "Estou meio sem grana, mas é preciso fazer um pouco de caridade. Meu rabino diz que estar amando a boa ação que se faz acaba atraindo coisas boas", diz ele, que é de origem judaica.

    EM BOA COMPANHIA

    O piano do hospital é dividido hoje com outros dois voluntários, que se revezam em outros dias da semana. "Isso aqui é muito gostoso. Você recebe tanto de volta", diz ele emocionado, depois de ter se ausentado na última quinta-feira por conta de uma pneumonia, que o levou a ficar internado alguns dias. Já recuperado, ele está pronto para o concerto desta semana.

    "Tenho alguns dons, um deles é tocar piano. Acho que eu recebo alguém para tocar comigo. Não estou sozinho nessas horas", divaga, enquanto fecha o instrumento de cauda do Samaritano, para posar para as fotos.

    Ao final das três horas de mais um recital no hospital, ele diz que sente uma emoção similar àquela de preparar um banquete. "Quando estou cozinhando, tenho a mesma sensação, como se alguém ao meu lado dissesse põe mais sal, coloca esse ou aquele tempero. Sinto que não estou sozinho." Os pacientes também não, graças ao chef de cozinha que sempre sonhou em ser pianista.

    rede social

    por Eliane Trindade

    rede social

    É editora do Prêmio Empreendedor Social. Aqui, mostra personagens e fatos dos dois extremos da pirâmide social. Escreve às terças, a cada duas semanas.

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024