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    Rede Social - Eliane Trindade

    Nasce uma mulher, a delicada transformação de Iza

    10/03/2015 02h00

    Iza optou pela delicadeza. A começar pelo modo de falar e de se vestir em harmonia com um rosto que ganha contornos femininos, à medida que os pelos indesejados vão sendo eliminados. As sessões de laser são programadas a cada inverno para não deixar manchas na pele alva.

    O corpo também se arredonda à base de hormônios, em um tratamento iniciado há dois anos. Nada de silicone nos seios nem cirurgias radicais, avisa a assistente de cabeleireiro, que concilia o trabalho em um salão em Higienópolis com o primeiro semestre do curso de ciências biomédicas na Unip.

    Izabel Silva é o nome que o/a catarinense nascido em Arabutã (SC) há 21 anos passará a adotar oficialmente em seus documentos.

    É assim que já se faz chamar na faculdade, antes mesmo de a Justiça lhe garantir o direito de portar uma carteira de identidade com o gênero pelo qual se define. "Fiz requerimento à direção para que na lista de chamada conste o meu nome social, que logo vai passar a ser o oficial."

    E assim foi feito, diz ela. "Até descobrir o que eu era, consultei médicos, psicólogos, livros. Sou uma mulher transgênero. É como a OMS [Organização Mundial da Saúde] classifica."

    Depois do autoconhecimento, veio a aceitação, "aquela fase de quebrar o preconceito consigo mesma". "Tinha que me entender para comunicar o que sou aos outros."

    E cada passo da caminhada com sandálias femininas número 39 foi dado com cautela. "Não obrigo as pessoas a me aceitarem, mas também tenho clareza de que não preciso provar nada para ninguém." Diante do questionamento de quando Izabel nasceu, responde sem pestanejar: "Em 23 de outubro de 1993. Já nasci Iza, mas só assumi essa identidade quando me senti preparada".

    MUNDO COR DE ROSA

    Apesar de ter desfilado pela vida até os 19 anos sendo tratada pelo nome masculino de batismo, o lado menina de Iza se fazia notar desde a infância. "Fui criada da mesma maneira que minha irmã mais velha. Só não entendia porque ela podia ter cabelo comprido e o meu era curto. Até os 7 anos, quando comecei a ir à escola, eu não via diferença de gênero entre nós duas. Lá, vi banheiros diferentes, brincadeiras separadas."

    Seu mundo sempre foi cor de rosa. "Desde criança, eu brincava de boneca, de princesa." No ambiente doméstico, tal pendor não suscitou traumas nem reprimendas. "Cresci com muito amor por parte dos meus pais e da minha avó. Eles me aceitaram e falam que sempre souberam e agiram da melhor forma dentro do que conheciam na época."

    Há cinco anos, Iza comunicou aos pais que ia "transitar". E fez questão de usar o verbo ser e não querer, para reafirmar não se tratar de voluntarismo. "Não é que eu queria ser mulher, eu sou uma mulher. É difícil alguém querer mudar de gênero. Ninguém opta por sofrer preconceito todo dia. Nos olham e nos tratam de forma diferente. Isso não é algo que se deseje. Acontece."

    Ela devolveu na mesma moeda o respeito com que a sua nova condição foi tratada em família. Iza deu um tempo nas visitas rotineiras aos parentes no Sul, ao iniciar o processo de transformação física. "Foi uma maneira de não chocar meus pais e para eles não vivenciarem a fase mais andrógena."

    A volta ao convívio familiar foi triunfal. "Fui passar o Réveillon de 2013 para 2014 em casa. Eles fizeram uma recepção pra mim. Praticamente um baile de debutante. Estava todo mundo reunido, primos, tios."

    Iza escolheu para o grande dia um longo colorido. "Choveu muito e eu arrastava o vestidão no meio da lama do sítio", lembra, aos risos. "Acima de tudo, foi um momento muito feliz."

    O "début" em um modelito feminino foi longe das vistas dos pais. Tinha 16 anos, quando tomou emprestado uma roupa de uma amiga para ir a uma festa. "Foi a primeira e a última vez que eu me travesti. Ali, era como se fosse atuar no teatro. Eu me escondi atrás de um personagem."

    GUARDA-ROUPA

    Passaram-se três anos até decidir mudar de guarda roupa definitivamente. Só assumiria a indumentária feminina no dia a dia, quando já fazia tratamento hormonal em São Paulo. "Já estava bem feminina, mas me vestia de menino. Achavam que eu era sapata."

    Numa certa manhã, olhou-se no espelho e concluiu: "Não dá mais para me vestir assim." Hoje, seu armário é 100% feminino.
    A troca de pele foi aos poucos e escorada em sua autonomia financeira. "Só assumi minha identidade feminina pra valer, quando me senti economicamente segura. Foi há uns dois anos, quando tinha um trabalho estável e que me dava respaldo."

    A escolha da profissão de cabeleireira tem a ver com aceitação. "É um ramo no qual tenho liberdade de me vestir de mulher." Após deixar o sítio onde os pais vivem e criaram os cinco filhos cultivando legumes orgânicos, Iza se mudou para Concórdia, a cidade maior das redondezas, que também ficou pequena para seus sonhos. Foi para a capital Florianópolis, quando passou no vestibular de matemática na Universidade Federal de Santa Catarina.

    Só cursou um semestre. "Naquele ambiente universitário, eu ainda não tinha transitado. Lá, me identificavam mais como gay ou lésbica, grupos que me acolhiam melhor. Eu me infiltrei. Em meio a gente tão diferente, eu passava despercebida. Era mais cômodo socialmente. Mas sabia que meu mundo não era aquele."

    PROCESSO VIOLENTO

    Trancou a faculdade e decidiu mudar para São Paulo. Foi na impessoalidade da metrópole que enfrentou a barra da mudança de gênero. "O processo todo é muito violento. Faço psicoterapia há um ano e meio. Pouquíssima gente passa por esse choque de mudar de imagem pessoal. O que fazer com aquele menino atrás do qual eu me escondia? E daquela personalidade, da antiga forma de agir e de ser?", indaga.

    A resposta também começa a ser formulada. "Compreender sua nova razão de viver e de ser é muito complicado. Mas, por outro lado, pouca gente tem a chance de ter duas vidas em uma só. E tudo o que isso implica."

    Entre as implicações está até onde ir. Não pretende colocar prótese de silicone. "Meus seios estão crescendo aos poucos e não quero fazer implante. A barba está rareando, pois já faço laser há três anos."

    A ingestão de hormônios é controlada por uma endocrinologista. "Como aumentam os riscos de osteoporose e câncer, por exemplo, é preciso ter acompanhamento médico bem próximo."

    Outra questão delicada foi "fazer ou não fazer" a cirurgia de mudança de sexo. "No começo, achava que precisava disso [retirar o pênis e moldar cirurgicamente uma vagina] para ser mulher. Mas ser mulher é muito mais que isso, é bem mais complexo. São tantos detalhes, talvez possa ficar um para trás."

    Por ora, decidiu manter o órgão sexual masculino. "Eu vejo isso com naturalidade, não é uma coisa que me ofende. Nasceu comigo."

    CURIOSIDADE X ASSÉDIO

    E está preparada para a curiosidade que desperta. "Você ter nascido mulher de duas cabeças não é uma dádiva o tempo todo", admite, sorrindo. "Em alguns lugares, quando percebem, você acaba sendo assediada. É meio inevitável. A curiosidade dos outros acaba te ameaçando um pouco."

    Já teve que lidar com abordagens mais agressivas. "Tem aquela coisa de que se é transgênero é travesti, é michê. Já sofri esse tipo de preconceito. Procuro não levar esse tipo de sentimento para dentro de mim. Tenho pena de quem carrega estereótipos para a vida. Nunca deixei que isso me ferisse de verdade. Não tem nada a ver comigo [se prostituir]. É uma escolha de vida. De cada um. Não é a minha."

    Iza acompanha casos de transgêneros que optaram pela operação. "Para muitos não é mutilação. Mas quem passa por cirurgia de troca de sexo vira um eunuco."

    E para embaralhar ainda mais as certezas, ela oferece outras nuances de sua sexualidade. "Sou uma menina saudável e que vê prazer em estar com garotas e garotos." Assume-se bissexual. "Já tive relações gays, depois que virei menina." Namorou uma garota por um tempo e atualmente está com um rapaz. "Estamos juntos há nove meses e acabamos de alugar um apartamento para morarmos juntos." Ele faz direção de cinema e trabalha numa produtora.

    ENSAIO NU

    E deu a maior força para a namorada posar nua em um ensaio para a fotógrafa Olga Vlahou, que desenvolve o projeto "Suposições", de fotografar os mais variados corpos e que deve virar exposição. "Escolhi a Iza como uma das personagens da série por sua delicadeza", explica a fotógrafa. "O importante era ela ficar à vontade na própria pele para que pudesse se desnudar."

    Iza escolheu como locação para o ensaio sensual os galpões abandonados da metalúrgica de um casal de amigos. "Ficar nua já foi muito mais difícil. Mas hoje em dia levo meu corpo com naturalidade. É o corpo que tenho. Com tudo o que tenho. Inclusive aquele detalhe retratado com muita delicadeza, com olhar bem feminino."

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    por Eliane Trindade

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    É editora do Prêmio Empreendedor Social. Aqui, mostra personagens e fatos dos dois extremos da pirâmide social. Escreve às terças, a cada duas semanas.

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