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    Rede Social - Eliane Trindade

    'Menina da esquina' vivida por Nanda Costa sumiu sem se ver no cinema

    24/03/2015 02h00

    Era uma vez uma linda garota de olhos verdes e cachos dourados. Natasha não é princesa de conto de fadas. É uma das "Meninas da Esquina" (ed. Record, 415 página), lançado em 2005.

    Quatro anos após ter transformado garotas de diferentes regiões do país em personagens do livro, descobri que uma delas estava desaparecida: Natasha, nome fictício que L.P.G.O. escolheu para se apresentar em seu diário, um dos seis que compõem a obra.

    O vago status "sumida" permanece inalterado decorridos seis anos. Há um monte de especulação sobre o destino trágico de Natasha, que hoje teria 31 anos. "Falam que foi esquartejada e jogada na serra por um traficante", conta Marcele, uma de suas melhores amigas. "Mas já ouvi também que ela deu um perdido nas drogas de um cara e por isso foi morta em São Paulo."

    Risco da vida de "mula", gente usada por traficantes para transportar drogas, até mesmo dentro do corpo, mediante pagamento, coação ou para financiar o próprio vício. No final do seu diário, Natasha já dava sinais de que era presa frágil da engrenagem do tráfico, à medida que perdia o viço da juventude e trazia no corpo, seu ganha pão nas ruas, as marcas do abandono e da violência.

    Fui atrás de Natasha novamente para apresentá-la a Jéssica, uma das protagonistas do filme "Sonhos Roubados" (2009), da diretora Sandra Werneck. Personagem que ganhou vida a partir de "Sexo, crochê e bicicleta", título do diário da jovem moradora de uma favela de São Vicente (65 km de SP). Compilada para o livro, a rotina de Natasha foi roteirizada para o cinema e transplantada para um morro carioca com pitadas de ficção.

    SEM RASTROS

    Descobri o seu "sumiço do mapa" quando procurei o Camará, ONG referência no atendimento psicossocial a adolescentes em situação de risco na Baixada Santista. A instituição havia feito a ponte com Natasha quando eu buscava garotas dispostas a registrar o seu dia a dia.

    Já havia tentado contato no orelhão da favela e pelo celular, mas sem sucesso. Queria convidá-la para assistir ao longa estrelado pela atriz Nanda Costa, escolhida para encarnar no cinema seus dramas e suas aventuras.

    No papel de Jéssica/Natasha, a atriz conquistou vários prêmios, entre eles o de melhor atriz no Festival do Rio e no de Biarritz, na França. "Foi um papel divisor de águas na minha carreira pelo grande desafio de protagonizar a história de tantas brasileiras e fazer isso com verdade", diz Nanda.

    O contato da atriz com Natasha foi pela leitura do diário compilado no livro: "Um das coisas que me tocaram é o fato de ela brincar com bichinhos de pelúcia, um contraste enorme com a violência do seu dia a dia".

    Ao ser informada sobre o sumiço da menina que inspirou sua personagem no cinema, Nanda destaca a coragem de Natasha em "dividir essa dura realidade com todos nós". O fim trágico, segundo ela, deve servir de alerta para outras meninas de comunidade que flertam com o tráfico.

    Por conta da interpretação em "Sonhos Roubados", Nanda seria convidada por Glória Perez para ser protagonista de uma novela da Globo em horário nobre. Estrelou "Salve Jorge", em 2012, dando vida a Morena, jovem vítima de tráfico de pessoas para fins sexuais.

    SEM FINAL FELIZ

    Enquanto o filme chegava às telas do Brasil e percorria festivais internacionais, Natasha havia sido escalada para outra trama da vida real. Sem final feliz.

    Na favela México 70, uma das mais violentas da Baixada Santista, onde passava temporadas no barraco do avô, todos dizem que ela foi "apagada". O que se fala à boca pequena é que o caso de Natasha com um traficante teria selado sua sentença de morte. Ali, impera a lei do "ninguém sabe, ninguém viu".

    É o resumo de uma biografia, a de Natasha e de tantas outras "meninas da esquina". Como poucos se importaram verdadeiramente com a sua existência, quem haveria de se preocupar com a sua ausência?

    É a morte anunciada e não oficial (sem inquérito nem certidão de óbito até o momento) de uma brasileira que se equilibrava na corda bamba desde o nascimento. "É a história do que é ser pobre em um país que não cuida nem gosta da sua gente desassistida e olha para meninas como elas apenas para criminalizá-las", afirma João Carlos Franca, coordenador do Camará.

    BATEU A AMBIÇÃO, NÉ?

    O educador entrou na vida de Natasha quando o caso dela foi encaminhado à instituição pela Justiça. João aparece em vários momentos do diário da então adolescente, como um dos poucos adultos em quem ela confia.

    Órfã de mãe e abandonada pelo pai, Natasha fez o primeiro programa aos 9 anos. "Sardentinha me falou que um cara ia me dar um dinheiro legal. Uns R$ 200 hoje, sei lá... Fomos três meninas para o hotel. Chegando lá o cara que pagou ficou mexendo em mim... Abriu minhas pernas, viu que eu era virgem e não fez tudo, mas me deu o dinheiro. Fiquei com muito medo de ele querer enfiar aquele negócio em mim."

    No relato daquele 4 de setembro de 2003, ela confidenciou lembranças dolorosas de sua infância ao gravador. O aparelho foi dado a ela por mim para que pudesse registrar o seu cotidiano de menina prostituída, já que tinha enorme dificuldade de escrever, apesar de matriculada no primeiro ano do Ensino Médio.

    "Comprei roupa, sapato e os patins [o seu par tinha sido roubado]. Ainda dei dinheiro para ajudar na casa da minha amiga [onde dormia de favor]. Aí, bateu a ambição, né?", resumiu. Era seus primeiros passos no mercado do sexo, transformando seu corpo frágil em cartão de crédito para comprar de brinquedo a remédio para o avô e leite para o filho, nascido quando tinha 15 anos.

    PASSAGEM PELA FEBEM

    Além de terreno para exploração sexual, as ruas eram também cenário de violência e crimes. Aos 14 anos, Natasha emprestou a arma, adquirida logo após perder a mãe, para um grupo de amigas praticar um assalto. Todas foram presas em flagrante. Ter sido cúmplice da "treta" lhe custou dois anos de internação na então Febem.

    João era a visita mais constante, assim como seu avô, um carroceiro de origem espanhola que adorava ler. Quando cumpriu a medida socioeducativa, Natasha recorreu ao educador para tentar retomar as visitas regulares à criança, que ficou sob a custódia provisória da avô paterna durante dois anos.

    Eram sempre explosivos os encontros de Natasha com a ex-sogra evangélica, que tinha a custódia provisória do garotinho.

    Um dos momentos de ira da mãe adolescente, inconformada por não retomar a guarda, está registrado em uma única folha de uma ficha social do Conselho Tutelar de São Vicente, com data de 9 de março de 2004. "Infelizmente, essas jovens não têm herança material nem afetiva", afirma a conselheira Eunice Pavarini, que encontrou nos arquivos o relato da avó sobre "baixarias" e "agressões" por parte de Natasha para pedir a suspensão das visitas da mãe à criança. "Elas são penalizadas também quando lhe negam o direito de exercer a maternidade", critica João.

    NADA CONSTA

    A conselheira tutelar auxiliou a Folha na busca do paradeiro de Natasha. "Gostaria muito de reencontrá-la viva e bem, mas também não localizei inquérito nem registro do óbito dela." Deu negativa a busca por boletim de ocorrência de um possível assassinato. Seu nome e filiação foram jogados no sistema informatizado que existe no Estado de São Paulo, pelo qual é possível rastrear crime ou ocorrência nos últimos dez anos. "Não consta nada com o nome dela. Infelizmente, não há notícias novas."

    Eunice procurou saber também do destino do filho de L.P. e faz o seguinte relato: "O garoto está bem, frequentando uma escola pública, cursando o 8º ano do ensino fundamental e no contra turno pratica futebol. A avó trabalha como empregada doméstica e disse que, antes de desaparecer, Natasha visitava o filho nas datas festivas, como Natal, Dia das Mães e Páscoa.
    Segundo ela, há pelo menos quatro anos não vê a mãe do seu neto. Diz ter procurado notícias junto aos colegas dela, usuários de drogas e em pontos de venda que ela frequentava, sem obter resposta de seu paradeiro. Não sabe se está viva ou morta, nem teve notícias de sua morte."

    DESPEDIDAS

    O último encontro de João e Natasha foi há mais de seis anos atrás, quando se esbarraram na praia de Itararé. "Lembro que era um sábado. Ela estava malcuidada, com dentes estragados, muito magra. Enfim, bastante afetada pelo uso de drogas e pela violência das ruas."

    O educador do Camará a convidou para almoçar. Natasha era sombra da garota radiante e cheia de personalidade que integrou o Comitê Estadual de Enfrentamento à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, quando acreditava ser possível mudar sua realidade.

    "Ela já era moradora de uma espécie de 'Brejo da Cruz', a metáfora construída por Chico Buarque para descrever a 'Terra do Nunca' dos meninos perdidos", compara João. A letra da canção fala da criançada que se alimenta de luz: "Há milhões desses seres/ Que se disfarçam tão bem/ Que ninguém pergunta/ De onde essa gente vem".

    A recordação derradeira do educador é muito próxima da descrição de Natasha feita por Marcele, quando as duas se reencontraram em 2008. "Foi em frente ao hospital municipal. Ela estava muito magra, sem dentes e com os cabelos desgrenhados."

    Marcele e Natasha chegaram a morar juntas em alguns períodos, sempre se virando nas ruas e tentando se proteger de todo o tipo de perigo e violência. "Olho pra trás e não sei como sobrevivi. Era para estar morta há muito tempo, assim como Natasha", pontua Marcele, que cumpriu pena de dois anos e nove meses por tráfico de drogas. Saiu da cadeia e hoje leva uma vida de dona de casa, ao lado do marido, um feirante, e de quatro dos seis filhos.

    Após o parêntese para contar seus próprios dramas, Marcele narra a batalha travada pela amiga em busca de uma vaga no hospital para internar o avô que estava com câncer. "Natasha fez o maior barraco para que ele fosse atendido. Xingava todo mundo. Chamou até a guarda municipal e a história de descaso foi parar no jornal."

    URSINHO PARA MÃE

    Foi também em um ambiente hospitalar que me despedi de Natasha, no início de 2008. Ela passou o encontro inteiro brincando com um ursinho de pelúcia que tocava musiquinha quando apertado, presente que eu havia levado para o seu filho recém-nascido. "Pra ele o quê? É meu. Lindo, lindo, lindo", repetia, enquanto acalentava o brinquedo.

    Ela ainda andava com aqueles passinhos curtos de recém-operada. Vestida com as roupas do hospital, Natasha também me pareceu mais velha e maltratada de quanto me recordava.

    Fazia um ano e meio que não nos encontrávamos. Nos reaproximamos quando soube que estava grávida de novo e que corria risco de perder o bebê em razão de uma queda de bicicleta (sua paixão, depois do crochê e do sexo, o trio que dá titulo ao seu diário).

    Fui informada de que ela passara duas vezes pela emergência, mas não conseguira ser internada para fazer a cesariana por falta de vagas na UTI neonatal, já que seu bebê prematuro iria necessitar de incubadora.

    Natasha esperou cinco dias até ser submetida ao parto cirúrgico por volta da 30ª semana de gestação. João e outros profissionais do Camará mobilizaram amigos e a mim para conseguir uma vaga na maternidade pública de referência de Santos, o que só foi possível graças ao empenho de uma deputada da região.

    Em sofrimento fetal por um semana, a criança não resistiria. Morreu 15 dias depois. Mais um lance da biografia dilacerante da sua jovem mãe, que foi separada da irmã mais nova por um juiz. Natália tinha 7 anos quando foi tirada da mãe e dada em adoção para um casal norte-americano.

    BARRIGA DE ALUGUEL?

    No recorte da vida de Natasha registrado no livro "As Meninas da Esquina", entre setembro de 2003 e agosto de 2004, boa parte da narrativa diz respeito ao drama de ver o Estado lhe cortar mais um laço afetivo. "Eu pari, não é justo. Não sou barriga de aluguel", esperneava, sobre a decisão do juiz de lhe negar o direito de retomar a criação do filho após sua passagem pela Febem. Xingou, bateu, apanhou, foi presa, mas nunca conseguiu reaver a custódia. "Que juiz vai dá um filho de volta pra uma garota de programa?", perguntava-se.

    Sabia a resposta. De short e top, seu uniforme de guerra, não conseguia nem sequer entrar no fórum, quanto mais audiência com "sua excelência".

    Engravidou de novo ("de um cara legal, que ficou direto no hospital torcendo para que nosso filhinho resistisse"). Seu sonho de maternidade, no entanto, seria abortado mais uma vez. Um outro golpe viria meses depois com a morte do avô. Natasha estava, de novo, sem chão, sem vínculos, entregue à própria sorte ou à falta dela. Uma garota forçada a se jogar na vida sem amortecedores.

    LADO SELVAGEM

    Em uma de nossas primeiras conversas, traduzi para Natasha a letra da canção "Walk on the Wild Side", de Lou Reed, que me fazia lembrar de suas histórias e experiências. E ao final ela me saiu com uma de suas tiradas: "Será que eu dei pra esse maluco?" Gargalhamos.

    E assim ela virou a alma do livro e do filme "Sonhos Roubados". Figura forte e complexa, tanto na realidade quanto na ficção. Uma força que –sem os alicerces (família, educação, moradia e acesso à saúde)– não foi suficiente para resgatá-la de uma espiral de violência e miséria sem fim.

    Parte dela e de sua história sobrevivem em 48 páginas do livro "As Meninas da Esquina". Na noite de lançamento da obra no Memorial da América Latina, em São Paulo, Natasha estava presente, mas incógnita (por questões de segurança, as verdadeiras identidades das seis garotas nunca foram reveladas).

    Ela estava linda, no frescor dos seus 21 anos. Fez babyliss nos cabelos e usava uma microssaia de crochê, look criado por ela mesma. Circulou entre os convidados com um grupo de colegas da ONG, de forma a não chamar a atenção.

    Impossível. A certa altura, ela saiu para fumar e ficou de papo com uma amiga minha. Não se conteve. "Essa aqui sou eu", informou, orgulhosa do seu diário. Poucas palavras que resumem o espírito de todo um trabalho: dar voz e vida a garotas como ela.

    Sempre rondou o projeto o fantasma de que um dos seis seis diários se encerrassem precocemente em razão de uma morte violenta. Afinal, elas continuam vulneráveis. Fazer o livro nunca teve a intenção redentora de "tirá-las daquela vida", embora os direitos autorais tenham sido integralmente divididos entre as seis meninas que embarcaram naquela aventura comigo.

    Um montante que não seria capaz de transformar a realidade, mas de trazer um pouco de alento. Uma delas usou o dinheiro para fazer um banheiro no barraco, outra comprou um carrinho para vender cachorro quente. Natasha presenteou o avô com uma mobilete.

    Quando me perguntam o que pode fazer diferença na vida das meninas da esquina, eu sempre respondo: o mesmo investimento que você faz na construção do futuro de seu filho, que precisa de casa, comida, escola, carinho e atenção.

    QUATRO SOBREVIVENTES

    A extrema vulnerabilidade delas (fruto do abandono da família, do Estado e da sociedade) estava nas entrelinhas de cada diário. No de Milena (intitulado "A poesia virou pó"), a ameaça vinha do crime organizado, que a infiltrava em presídios, como "mulher" de líderes de uma facção criminosa.

    P.S, as iniciais do seu nome verdadeiro, escapou de bala ou vício. Mas, em 2007, morreu atropelada por um caminhão, quando andava de bicicleta no acostamento de uma rodovia.

    As outras quarto "meninas da esquina", hoje mulheres feitas, continuam em maior ou menor grau precisando de respostas para seus problemas de sobrevivência mais prementes.

    A linha que separa a vida da morte é tênue para todos, mas no caso delas a fronteira é testada diuturnamente. Elas insistem em sobreviver. Até quando?

    "A morte de algumas destas meninas são anunciadas. Descobri quando fiz o documentário 'Meninas' [2006], sobre gravidez precoce. Sem estudo, poucas encontram a saída. Muitas vezes, a opção acaba sendo ficar perto do Poderoso Chefão, o traficante", resume Sandra Werneck, sobre um roteiro que se repete na Baixada Santista ou Fluminense e em tantos outros enclaves miseráveis Brasil.

    "Quando li a história de Natasha me emocionei. Apesar das falcatruas da vida, ela me pareceu guerreira. Deve ter sido. Como personagem, eu torcia por ela, como torço por todas meninas que têm seus sonhos roubados."

    Fadada a figurar nas estatísticas de mortes violentas no país, Natasha nem número virou. A história dela, de Milena e das outras quatro sobreviventes, no entanto, resistem em 415 páginas que elas me ajudaram a escrever trafegando diariamente pelo lado selvagem da existência, como cantou Lou Reed. "Pois a vida é louca, e eu sou mais louca ainda", como gostava de repetir Natasha, a desaparecida.

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    por Eliane Trindade

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    É editora do Prêmio Empreendedor Social. Aqui, mostra personagens e fatos dos dois extremos da pirâmide social. Escreve às terças, a cada duas semanas.

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