• Colunistas

    Monday, 06-May-2024 19:42:13 -03
    Rede Social - Eliane Trindade

    Um dia o 'monstro' trancafiado aos 16 anos vai sair da cadeia. E aí?

    11/08/2015 02h00

    A imagem de um grupo de parlamentares festejando a aprovação da proposta de redução da maioridade penal de 18 para 16 anos resume bem as contradições e perplexidades que tal debate suscita em um país desigual e violento como o Brasil.

    É lamentável ver legisladores comemorarem "vitória", como se mandar adolescentes para a prisão fosse a melhor resposta para inaceitáveis e alarmantes índices brasileiros de criminalidade.

    Não é nem nunca será. Com 607.600 presos, o Brasil tem a quarta maior população carcerária do mundo.

    De acordo com os últimos dados divulgados pelo Ministério da Justiça, referentes ao primeiro semestre de 2014, estamos atrás apenas da Rússia (673.800), China (1,6 milhão) e Estados Unidos (2,2 milhões).

    Nessa toada, a estimativa é de que um em cada dez brasileiros estará atrás das grades em 2075.

    Caso o projeto de lei que reduz a maioridade penal seja aprovado pelo Congresso Nacional, o que nobres deputados e senadores estarão fazendo é referendar o "senso comum", já que 87% dos brasileiros se dizem favoráveis à medida, segundo pesquisa Datafolha.

    É um cenário no qual jogar para a plateia pode render mais dividendos eleitorais do que bater na tecla de fortalecimento das políticas públicas (educação, saúde, moradia), um remédio mais eficaz, mas de longo prazo.

    Certamente, os parlamentares que votaram pelo encarceramento de garotos de 16 anos junto com adultos –jogando no lixo as conquistas do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescentes)– vão garantir mais votos de um eleitorado sedento por medidas mágicas para mudar nossa aterradora realidade.

    Só que não se resolve questões tão complexas quanto criminalidade e segurança pública numa canetada, baixando o cassetete e construindo mais prisões.

    OPINIÃO PÚBLICA

    Como se formou essa opinião pública que deseja o endurecimento das leis para adolescentes?

    Crime hediondos e de grande repercussão acabam contribuindo para aquecer o debate. Uma zapeada pelos programas policialescos da tevê aberta alimenta temores e discursos, reverberando os sentimentos justiceiros de mensageiros do apocalipse da nossa sanguinária crônica cotidiana de violência.

    A banalização da violência ora entorpece ora é combustível para o "dente por dente, olho por olho".

    O desejo difuso é colocar na cadeia "os monstros" (e muitos deles têm caras imberbes e negras) que matam, estupram e tocam o terror, seja no Zona Sul do Rio de Janeiro, seja na pequena Castelo do Piauí.

    ESTADO VINGATIVO

    Ninguém defende impunidade para autor de crime hediondo. O que se condena é um Estado vingativo.

    No afã punitivo que crimes de grande repercussão naturalmente suscitam centra-se fogo no enfrentamento dos efeitos e não das causas do problema.

    Desenhando: só vamos tirar o "monstro" de circulação e deixá-lo bem longe de nós por um tempo.

    Não seria hora também de responder à questão mais difícil e essencial? Quem são esses monstros? Como eles foram gerados?

    Será que os deputados de braços erguidos a favor da redução da maioridade penal já se perguntaram isso ou tentaram entender o que faz um menor apertar o gatilho?

    Pela lógica irracional de reduzir a idade para punir, daqui a pouco os legisladores vão ter que aprovar uma lei pelo aborto preventivo para que "os monstros" que nos ameaçam nem sequer nasçam.

    DIREITOS HUMANOS

    Quem usa tais argumentos ou aponta fatores que nos fazem uma sociedade tão violenta é logo desqualificado como "defensor de direitos humanos", como se tal defesa colocasse o interlocutor no banco dos réus como cúmplice de criminosos.

    São vozes que se erguem na contracorrente para lembrar que o garoto que vai apertar o gatilho ou estuprar brutalmente é gestado cotidianamente em um Brasil que finge educar seus jovens em escolas que não são dignas desse nome.

    São filhos, em regra, de famílias desestruturadas, constituídas de pais e/ou mães adultos, que deixaram de cumprir o papel de cuidadores.

    Questões de fundo como estas são ignoradas em meio ao "salve-se quem puder". Todos estão cansados de saber que não adianta blindar o carro ou eletrificar o muro em torno dos condomínios.

    O Brasil real sempre acaba batendo à porta ou dando as caras na esquina.

    É aí que reside a maior tragédia brasileira. O eterno país do futuro nem sequer camufla seu "apartheid social". Temos uma nação à parte, com seus hospitais e escolas particulares, condomínios murados e prédios de segurança máxima.

    São brasileiros que vivem em "prisões" de luxo e que, a cada nova barbárie, aventam a hipótese de se mudar para um país civilizado.

    Talvez por isso tantos desejem trancafiar os que os ameaçam em prisões de verdade, aquelas classificadas como "depósito de gente".

    O espaço público, a escola pública, o transporte público, o serviço público de saúde são para pobres, os habitantes do outro Brasil. Os mesmos que, em sua maioria, povoam as prisões fétidas e superlotadas.

    É um clássico ouvir brasileiros viajados tecendo loas ao metrô de Paris e Londres. Os mesmos cidadãos do mundo que nunca embarcaram em um vagão da CPTM. Aquela galera que enche a boca para dizer que o Brasil não tem jeito, mas nunca fez pressão de fato para a melhoria do transporte público.

    HAJA PRISÕES

    O que isso tem a ver com redução da maioridade penal? Tudo. Haja prisão para dar conta dos "monstros" que já geramos e dos tantos que ainda vão nos assombrar. Afinal, vivemos em um país dividido e que continua ostentando o título de um dos mais desiguais do mundo, exibindo seu gigantismo também em injustiça.

    Faço parte dos 13% contrários a encarcerar brasileiros cada vez mais jovens. Sou integrante de uma minoria que só tem a lamentar que a única resposta para combater o aumento da criminalidade em todas as faixas etárias seja o da prisão de adolescentes em cadeias comuns.

    Que tal punir os adultos corresponsáveis? Que tal aplicar o rigor da lei ao governante que deixou de investir em educação ou aos pais que abandonaram um filho à própria sorte?

    A galera do "prende e arrebenta" pode festejar hoje a derrota contra a turma "dos direitos humanos que defende bandido", como são tachados aqueles que apontam para a insanidade de endurecer leis e entulhar prisões já entulhadas, sem se ater ao fato de que só estamos adiando o acionamento da bomba-relógio.

    Não adianta só "engaiolar o monstro" e afastá-los de perto pelo maior tempo possível. Não existe prisão perpétua nem pena de morte no Brasil. Um dia, esses jovens encarcerados vão voltar ao convívio social.

    O que esperar de pessoas saídas de prisões nas quais detentos são degolados por seus pares, como ocorreu no Maranhão e no Paraná? O que esperar de presos tratados como bichos quando eles ganharem a liberdade?

    Gostaria de ver aprovadas leis que contribuíssem para o desmanche da "fábrica de monstros" em que o Brasil se converteu.

    Gostaria de festejar a efetiva implantação do sistema de garantia de direitos, previsto no Estatuto da Criança e do Adolescentes, legislação de vanguarda aprovada há exatos 25 anos, mas que passou a ser demonizada sem que tantos de seus pilares saíssem do papel.

    Questões essenciais, mas que infelizmente não dão ibope nem voto.

    rede social

    por Eliane Trindade

    rede social

    É editora do Prêmio Empreendedor Social. Aqui, mostra personagens e fatos dos dois extremos da pirâmide social. Escreve às terças, a cada duas semanas.

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024