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    Rede Social - Eliane Trindade

    Nasce uma mãe de quatro crianças em uma família incomum

    08/09/2015 02h00

    Ela decidiu escrever para não esquecer dos caminhos tortuosos e emocionantes que a levaram à maternidade.

    O resultado está nas 142 páginas de "O Caminho das Cores" (Miró Editorial), livro no qual Ligia Sommers, 56, narra o encontro com os quatro filhos, hoje na faixa dos 20 anos.

    "Sou uma pessoa maternal por natureza. Eu precisava ser mãe e fui", descreve. A empresária paulistana usa um pseudônimo para si e cores para identificar a prole, ao trazer a público uma história de adoção de duas gêmeas, então com seis anos, e dois meninos, de cinco e quatro.

    O quarteto foi recolhido a um abrigo para escapar de maus-tratos em casa.

    "Foram cometidos crimes. As crianças sofreram uma série de situações e não queria expô-las", explica Ligia, sobre as gêmeas Azul e Lilás, 23, e os garotos, apelidados de Verde, 22, e Vermelho, 21.

    Adotar crianças já crescidas foi obra de um acaso que se impôs. "Aconteceram muitas coincidências ou sincronicidades durante o processo de encontrar meus filhos. Você pode chamar isso de destino ou mágica, como quiser", diz ela, sobre a adoção incomum, em 1998, de quatro irmãos retirados da família biológica.

    Naquele momento, a lei brasileira ainda não protegia os laços familiares evitando separar irmãos em processos de adoção. Para Ligia, os quatro virariam seus filhos não por imposição da legislação.
    "O importante mesmo é estar de olhos abertos para os sinais."

    E eles foram muitos, de acordo com a narrativa emocional do livro. O quarteto se encontrava em um orfanato havia dois anos, quando a autora engatinhava na burocracia para entrar na lista de espera de adoção.

    GRÁVIDA DE ALMA

    "Tudo começa em um momento muito feliz da assistente social que fazia a entrevista para me qualificar como apta ou não para adoção", recorda-se. A funcionária do fórum fez mais que aprovar a candidata a mãe adotiva.

    "A gente vê que você está grávida de alma", teria dito a assistente social que quis saber da entrevistada se havia sonhado com uma menina lourinha de olhos azuis, assim como ela. "Disse que não e estava disposta a aceitar o que o destino me mandasse."

    Uma segunda pergunta seria decisiva. Ligia aceitaria adotar crianças maiores? A resposta positiva fez a profissional lhe falar da existência das gêmeas disponíveis para adoção. "Achei lindo e disse que aceitaria se elas tivessem até uns dois anos. Ela falou que as duas tinham um pouco mais."

    Em um novo encontro, Ligia descobriria que as gêmeas já estavam com seis anos, idade em que as possibilidades de serem adotadas diminuíam progressivamente.

    E mais surpresas a esperavam na antessala da adoção: as garotinhas não estavam sozinhas no orfanato, tinham mais dois irmãozinhos.

    A marinheira de primeira viagem tremeu. "Como assim? De zero filho a quatro em alguns segundos?" Ligia foi para casa pensar.

    Dividiu as angústias com o marido. Eles viviam em casas separadas, mas estavam dispostos a formar uma família. Fizeram as contas e o executivo bem-sucedido, de origem alemã, concluiu que eles teriam condições de educar o quarteto.

    A futura mamãe então se preparou para um primeiro contato com as crianças. Pediu que fosse em um ambiente neutro para que não fosse identificada como interessada em adotá-las. "Sempre que visitava orfanatos, as crianças pediam para serem levadas de lá. Não queria passar por essa situação por não saber se seria capaz de adotar quatro."

    O encontro ocorreu durante uma missa com mais de 200 pessoas. Ligia viu as gêmeas de longe. No momento da comunhão, o padre chamou cinco crianças para dividir o pão com quem quisesse. "Observei que a Azul, andou por todo o lugar e não distribuiu o pão. De repente, ela veio e dividiu comigo", emociona-se Ligia. "Vi aquilo como um sinal."

    Era a certeza de que precisava para voltar ao fórum e dar entrada na papelada.

    LENTIDÃO DA JUSTIÇA

    Não seria tão simples. As meninas estavam prontas para deixar o abrigo, pois os pais biológicos tinham aberto mão da guarda de ambas. Já os meninos, não.

    Eles estavam presos a um processo judicial no qual os pais queriam retomar o pátrio poder, sob a justificativa de que os garotos poderiam trabalhar para ajudá-los.

    Em virtude do histórico de abusos, os pais perderam em primeira instância, mas recorreram da decisão. A ação se arrastava há dois anos.

    Ligia viveria ali uma dura prova: levar as duas meninas para casa e deixar os dois meninos no orfanato. O garotinho maior parou de comer, deixou de falar, reagindo à separação. "Ele sentiu demais e decidiu que ia morrer de tristeza."

    Um outro empurrão do destino ajudaria Ligia a reunir a prole.

    Quatro meses depois, angustiada com o sofrimento das crianças, ela procurou ajuda de um ex-colega de faculdade de direito para descobrir como andava o processo no Tribunal de Justiça de São Paulo. Para sua surpresa, ele era o desembargador designado para o caso.

    A conexão fez a Justiça andar mais rápido e finalmente os irmãos foram reunidos em um novo lar. "Meu filho, que chamo de Verde, levou um tempo para se recuperar. Quando ele chegou em casa, me disse uma noite que o coração dele estava preto de tristeza."

    Carinho e cuidado foram a receita para curar algumas das feridas, muitas delas marcadas na pele na forma de cicatrizes de queimaduras de cigarro.

    "As marcas do sofrimento físico e psicológico se tornaram apenas uma recordação", escreve uma das gêmeas, Lilás, no livro. "Nada se compara ao lindo presente que ficou de verdade: uma família maravilhosa."

    A outra gêmea, Azul, que comungou o pão com Ligia naquele primeiro encontro confessou tempos depois a razão do gesto. "Quando olhei nos seus olhos, vi que você era minha mãe".

    A mãe se emociona e com voz embargada diz que essa certeza de que havia encontrado finalmente "seus filhos" a fez escrever o livro para encorajar casais na fila de adoção a abrir a possibilidade para adotar crianças maiores.

    A imensa maioria dos interessados em adotar só cogita levar para casa bebês. "E querem meninas brancas recém-nascidas", frisa.

    A autora de "O Caminho das Cores" quer chamar atenção para algumas vantagens de procurar crianças maiores.

    "Meu objetivo é mostrar de uma forma consciente e profunda que se você está disposto a adotar, talvez seja interessante olhar esse grupo que costuma ser excluído da adoção", explica. "Além do fato de que neste processo, pode-se descobrir várias empatias entre os futuros pais e filhos."

    No seu caso, a primeira empatia foi física. "As gêmeas são muito parecidas comigo. A única diferença é que tenho olhos azuis, enquanto os delas são verdes." A semelhança pode ser um facilitador do processo de adaptação. " Não é um fator excludente, mas é facilitador."

    Ligia esclarece que não se trata de racismo. "Quando um casal fica numa fila cinco anos esperando uma menina loura, talvez seja preconceito. No meu caso, ao ver uma criança que parecia comigo, só facilitou o processo de reconhecimento. Quem procura um filho deve abrir os olhos para crianças maiores porque de repente seu filho já está lá no orfanato."

    A identificação pode se dar até por um defeito, segundo ela. "Verde tem um dos dedos do pé igual ao do meu marido. Seu mindinho é mais encurvadinho, torto. Essas são as empatias. Você olha e diz: 'É meu filho'."

    Ligia salienta, no entanto, que adotar requer a mesma responsabilidade de colocar um filho do mundo.

    "Me deparei com um número assustador: 35% das crianças adotadas são devolvidas. É aquela coisa, vou lá adoto e se não der certo, jogo fora. É desumano. Já é muito triste estar num orfanato, mais ainda é sair e voltar."

    Por isso, ela frisa que a decisão deve ser bastante amadurecida. "Meus filhos não vieram de fábrica, fui uma mãe muito presente em cada situação, em cada problema. Sabia que tinha tomado a decisão para sempre."

    SEM CONTO DE FADAS

    Também não se trata de um conto de fadas, apesar das fotos de propaganda de margarina, com todos lindos e sorridentes.

    "Ter quatro filhos é muito trabalhoso. É abrir mão da sua vida. Mudei de casa, de carro. É outra vida", afirma. "A nossa é uma história com final feliz porque a gente construiu esse final, mas claro que tivemos momentos difíceis."

    Um dos maiores desafios foi a doença do caçula, chamado de Vermelho no livro.

    "A gente percorreu mais de 20 médicos", conta ela, sobre a peregrinação também por escolas, pois o garoto não se adaptou a cinco instituições.

    A solução foi contratar uma tutora para acompanhá-lo por anos. "Com o passar do tempo, ficou muito claro que ele tinha muito mais do que hiperatividade. Só que os médicos não viam isso."

    Até que uma psiquiatra chegou ao diagnóstico, ao comprovar uma lesão cerebral frontal, causada por uma agressão feita pelo pai biológico quando Vermelho era ainda bebê. "Todos os quatro, desde pequenos e até hoje, se referem aos pais biológicos como 'os maus'."

    Já crescidos, os três maiores cursam faculdade e vivem juntos em um apartamento alugado nas proximidades da casa de Lígia. "Há dois anos, aluguei um apartamento aqui perto, para que eles tivessem essa vivencia de amadurecimento."

    EM BUSCA DE EQUILÍBRIO

    Vermelho vive em uma instituição no interior de São Paulo, há cinco anos.

    "A lesão o impede de ter controle dos impulsos. Foi uma escolha para manter a saúde mental dele e dos outros. A convivência era bastante perturbadora para o equilíbrio familiar. A minha dificuldade foi escolher um caminho em que ele fosse feliz."

    Outras escolhas fazem da família Sommers um caso especial. Ela e o marido permaneceram casados no papel, mas levam vidas separadas desde antes da adoção. O que não impediu que o pai fosse sempre presente na vida dos filhos.

    "Viajávamos juntos nas férias, eles passavam finais de semana na casa dele, como fazem os casais divorciados. Ele é o melhor pai do mundo", diz Ligia. "Nossa história é inteiramente sui generis. Não vivemos como casal, mas construímos uma família juntos."

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    por Eliane Trindade

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    É editora do Prêmio Empreendedor Social. Aqui, mostra personagens e fatos dos dois extremos da pirâmide social. Escreve às terças, a cada duas semanas.

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