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    Rede Social - Eliane Trindade

    Moda engajada: vendedor de galinha e ex-traficante também são fashion

    15/12/2015 02h00

    O que une um ex-traficante do morro do Alemão, um vendedor de galinha do sertão do Ceará e um estudante de uma escola de elite do Rio?

    Os três cruzaram o caminho de Rony Meisler, CEO do grupo Reserva, e viraram protagonistas ou beneficiários do Rebeldes com Causa, projeto de responsabilidade social da grife ícone da juventude dourada do sudeste.

    Levado pelo acaso e pelo tino que fez da marca "case" de sucesso no mundo da moda, Meisler foi criando a partir de 2014 uma rede de apoio ao empreendedorismo e a projetos sociais.

    No final de setembro, o empresário foi a Pentecostes (CE) dar uma palestra para uma turma da Adel, organização que promove o desenvolvimento sustentável em comunidades do Nordeste.

    A organização criada pelo economista Wagner Gomes, que integra a primeira leva de 11 "rebeldes", é apoiada pela Reserva há dois anos.

    Não é que ali, em pleno sertão cearense, o carioca de família judaica encontrou uma alma irmã em Cícero Neto, conhecido como Zé Galinha?

    Meisler conta os detalhes do encontro com o sertanejo que nunca usou uma camisa polo com o logotipo de pica-pau, carro-chefe da grife que faturou R$ 231 milhões em 2014.

    "Fizemos o lançamento da escola debaixo de um cajueiro do tamanho do mundo.

    Foi um coisa linda. Na volta para Fortaleza, um ex-aluno, o Cícero, pediu carona.

    Ele fala pelo cotovelos. Foram 200 km sem que ele calasse a boca. Mas a história do moleque é incrível.

    Há três anos, ele ganhava R$ 10 por semana vendendo galinha para sustentar a mãe e a irmã.

    Quando terminou o curso, ele tinha o básico para ser empreendedor rural.

    Aí, pensou: 'O bullying do sertão é vendedor de galinha. Se ninguém quer ser, então vou ser. Tem espaço'. Olha que danado!"

    Meisler se surpreendeu com a percepção aguçada do jovem de 26 anos que encontrou um nicho ainda mais promissor: as prefeituras passaram, por lei, a comprar 30% de produtores locais.

    "Cícero foi lá e conseguiu o primeiro contrato de R$ 25 mil por ano como fornecedor de galinha. O segundo foi de R$ 35 mil. Hoje, com três matadouros, é de quase R$ 100 mil, o que lhe garante uma renda mensal de R$ 5.000."

    Na despedida, o Zé Galinha empreendedor voltou a surpreender o dono da Reserva.

    "Rony, agora eu tô preparando minha sucessão", explicou. Pretende passar o bastão para "a velha", no caso, a mãe, para se dedicar à Adel e criar novos negócios promissores no sertão.

    NO ANDAR DE CIMA

    No outro extremo da pirâmide social, Meisler também encontrou jovens inspiradores.

    Estudante de uma escola de elite do Rio, Luti Guedes, 23, conquistou de cara o seu passaporte para turma inicial dos Rebeldes com Causa, selecionada em 2014.

    Meisler conta que ficou impressionando com a trajetória de Luti, que havia criado um projeto social aos 16 anos.

    "Ele foi com a escola de classe média alta do Rio visitar comunidades ribeirinhas na ilha de Marajó (PA).

    Voltou pra casa com a ideia de criar uma biblioteca, depois ajudou a fazer a horta comunitária e não parou mais.

    Quanto o conheci, ele estava fazendo um crowdfunding para levantar recursos para construir uma escola.

    Já tinha conseguido R$ 4.000. Perguntei se era sustentável e se já tinha professor e material didático garantido. Ele foi falar com o prefeito, conseguiu autorização do MEC.

    Doamos o dinheiro que faltava para erguer a escola."

    Por iniciativas como essa, Luti foi eleito aos 21 anos Embaixador da ONU para Educação.

    "A transformação é da sociedade. Você tem três atores: os cidadãos, a iniciativa privada e o Estado. Óbvio que o Estado tem a maior responsabilidade. Arrecada para isso. Mas o cidadão também tem", defende Meisler.

    O contato com projetos como o Lute sem Fronteiras, fundado pelo estudante, serviu para "virar essa chave" na cabeça dos sócios da Reserva.

    TRAFICANTE FASHION

    Com esse olhar aguçado para oportunidades e ciente de que tem uma missão além de vender roupa, o próximo passo foi apoiar o lançamento do selo social AR, licenciado pelo AfroReggae.

    Além da Reserva, outras empresas também aderiram ao selo que gerou R$ 2 milhões em receita para a instituição.

    "É uma ferramenta que a ajuda a multiplicar as oportunidades profissionais e culturais de jovens da periferia e de egressos do sistema prisional", explica Meisler.

    A ideia do AR teve uma prova de fogo, quando a Reserva viu a sua marca associada a um traficante que se entregou após a tomada do morro do Alemão, em 2010.

    "A história foi surreal", diz Meisler.

    "Quando o Estado ocupou o Alemão, Diego [Raimundo da Silva Santos, conhecido por Mister M por ser um dos seguranças de um dos líderes do tráfico local], entregou-se à polícia usando uma polo da Reserva.

    Ninguém me ligou para falar dos famosos que estão usando a marca, mas nesse dia umas 50 pessoas me telefonaram.

    O primeiro era um fornecedor dizendo que um traficante se entregou usando uma camisa falsa da marca.

    Fiquei estupefato com a imagem. Parecia uma campanha da Reserva.

    Ele usava uma polo turquesa, com o backdrop da polícia do Rio ao fundo e ele sorrindo.

    Depois, eu descobri que Diego sorria porque na confusão dois fotógrafos caíram no chão.

    Ele riu da cena. Saiu a foto como ele tivesse sacaneando os caras.

    Enfim, não tinha como esconder aquela imagem.

    A única coisa que consegui falar foi: ´Brother, não é falsa, não' [risos]. Era uma polo Reserva.

    Uma das demais ligações foi do Júnior [do AfroReggae]. 'E aí, malandro, o que a gente faz?', ele me perguntou.

    Respondi: 'Vamos transformar esse limão numa limonada. Vamos segurar o lançamento do AR, tentar recuperar o Diego e ele vira garoto propaganda do selo.

    Foram nove meses de prisão para o Diego e de gestação do AR.

    Ele tinha o sonho de ser cinegrafista, sua profissão hoje no próprio AfroReggae.

    O lançamento da grife AR foi em 2012. A campanha foi fotografada pelo J. R. Duran no alto do complexo do alemão, com Diego, cinco policiais do Bope e três ex-traficantes.

    Aquela imagem comunicava que a reinserção social é possível".

    MAIS QUE EXEMPLOS

    Outro exemplo poderoso de transformação é de Eduardo Lyra, do Gerando Falcões, ONG que tem a Reserva como parceira em uma nova aventura fashion.

    Meisler relata a trajetória que o fez apostar em um garoto nascido em uma favela de Guarulhos (SP), que concluiu a faculdade a duras penas e se tornou um escritor.

    "Edu tinha tudo para ser um bandidaço.

    O pai começou a traficar, se viciou e acabou preso. A mãe vai visitá-lo na cadeia e é violentada.

    Um dia, chega em casa e descobre que o 15º primo dele tinha sido morto.

    Teve uma síncope, começou a se rasgar, mas fez uma promessa: ia tirar o nome da família Lira das páginas policiais.

    Entrou para a faculdade de jornalismo em Mogi das Cruzes. Na primeira aula, o professor leu o texto dele e disse: 'Edu, desiste. Você não tem como ser jornalista'.

    Aquilo mexeu com ele. Tinha três empregos para conseguir pagar a faculdade.

    Seu trabalho de final de curso foi o livro 'Gerando Falcões', com exemplos de pessoas que como ele saíram da pobreza absoluta para construir coisas enormes.

    Com suas persistência, ele conseguiu entrevistar personalidades como Nizan Guanaes [publicitário].

    Vendeu 5.000 exemplares do livro por R$ 9,99 dentro da comunidade. Pra gente que nem sabia ler. Uma editora grande o procurou.

    O livro hoje está em todas as livrarias do país e começou a gerar um graninha".

    Edu e Meisler hoje estão em meio à empreitada de viabilizar uma marca 100% social: a 40.076.

    "É um quilômetro a mais do que os 40.075 km da circunferência terrestre", explica. "É aquela coisa, vamos correr atrás."

    Martelava na cabeça de Meisler uma frase de Edu: "Menino vai com fome para a escola e encontra alguém traficando dentro do banheiro. O garoto pega 10 gramas de qualquer coisa para vender e pagar o lanche. E assim entra na vida."

    Por que não oferecer outro produto para a molecada vender no lugar da droga?

    Assim surgiu um modelo de negócio que transforma jovens da favela em vendedores de peças que também podem ser encontradas no shopping e nas lojas da zona sul do Rio.

    "Deixamos tudo em consignação. O cara tem 90 dias para pagar. Se não vender, devolve. Entregamos as peças pelo preço de custo mais impostos", diz Meisler.

    Se o vendedor da favela pega o produto a R$ 10 e vender a R$ 20, R$ 10 é dele. Se vender por R$ 40, R$ 30 é dele. "A ideia é trocar a venda de droga pela venda de roupa."

    E com um argumento de venda infalível: "É o mesmo produto da loja, só que comigo você pode pagar menos."

    E o sócio da Reserva não teme prejuízo de imagem para a marca ao se envolver com temáticas fortes e personagens polêmicos por meio de projetos sociais inovadores.

    "É burrice não querer se associar. É preconceito não só de classe, mas cultural", diz Meisler.

    "Além da questão humana, existe nesse discurso idiota uma questão financeira. Veja o caso da Burberry, que começou a ser usada pela galera do hip hop e é hoje a marca de luxo que mais vende no mundo."

    Adepto do movimento "capitalismo consciente", Meisler foi eleito em 2014 "O Homem do Ano" pela instituição americana Fashion for Development.

    "Sabe qual é o maior antídoto para um capitalismo que gera desigualdade?", indaga. "É o próprio dinheiro. Quando os concorrentes percebem que uma marca consciente está dando certo e gerando lucro, vão querer copiar."

    Como lançador de tendências em uma moda engajada, o CEO da Reserva prepara para janeiro o anúncio de uma nova leva de Rebeldes com Causa.

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    por Eliane Trindade

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    É editora do Prêmio Empreendedor Social. Aqui, mostra personagens e fatos dos dois extremos da pirâmide social. Escreve às terças, a cada duas semanas.

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