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    Rede Social - Eliane Trindade

    No terreiro de pai Alexandre tem alemão, universitários e Surfistinha

    16/02/2016 02h00

    Era minha estreia em um terreiro de Umbanda. Naquela noite de quarta-feira, aguardava a chegada de pai Alexandre para uma sessão de cura na Casa de São Lázaro, na zona sul de São Paulo.

    Acompanhava Manfred, um amigo recém-operado para retirada de um tumor no timo, órgão do sistema imunológico localizado no mediastino –espaço entre os pulmões. Ele, sua mulher, Lara, e eu esperávamos no pátio, onde um grupo de médiuns fazia seus ritos preparatórios.

    Em um dado momento, passa por mim uma jovem de longos cabelos castanhos, descalça e em trajes brancos –camiseta polo e saia rodada comprida. Trocamos um sorriso amistoso.

    Comento com meus amigos: "Conheço essa menina de alguma lugar. Não consigo lembrar de onde."

    A fila à espera de Alexandre Meireles, 45, que comanda o Círculo de Irradiações Espirituais São Lázaro há duas décadas, só aumentava, sinal da popularidade do terreiro e prenúncio de noite longa.

    Mais de uma hora depois, tudo seguia no mesmo ritmo. Em outra roda no pátio cimentado e agora já quase lotado, observo de novo a moça de fisionomia familiar. Então, cai a ficha: Bruna Surfistinha, na encarnação filha de santo.

    Ela mesma: Raquel Pacheco, a paulistana de classe média alta que ganhou fama e as telas de cinema ao narrar suas aventuras e desventuras como garota de programa.

    Era a figura mais improvável de encontrar naquela incursão. "Nossa, já imaginei muita coisa com a Surfistinha, menos levar um passe", brincou meu amigo.

    CURIOSIDADE E FÉ

    A noite prometia outras surpresas. Tudo era novidade para Manfred, de ascendência alemã e de família luterana, que acabara de descobrir um câncer raro entre os pulmões.

    E também para mim que, mesmo sendo baiana, nunca havia mergulhado nos mistérios da Umbanda ou do Candomblé.

    Sou de família batista, do tipo que mantém distância de "macumbeiros", como minha avó se referia aos seguidores das religiões de origem afro-brasileiras, sem disfarçar o preconceito.

    Despida de juízos preconcebidos e armada da minha incessante curiosidade jornalística e uma boa dose de fé, adentrei nos territórios de pai Alexandre.

    Ele chega por volta de meia-noite. Ou melhor, somos apresentados por uma amiga, uma de suas auxiliares, ao Seu Sete, a entidade que ele encarna naquela sessão de cura e limpeza espiritual.

    O jovem branco de 45 anos é a antítese da figura do pai de santo do imaginário popular.

    Ex-estudante de Ciências Sociais da USP, ele quebra estereótipos e apresenta as divindades da Umbanda. "Quem comanda a casa é o Caboclo Pena Branca", diz.

    Uma das salas, onde predomina o vermelho, é dedicada a exu. O que merece uma longa explanação da figura de branco e sorridente que trocou a antropologia pelo espiritismo. "Tiraram o tridente da mão do Diabo e colocaram na dele, mas exu nunca foi nada isso", continua Alexandre.

    "Uma coisa importante dessa casa é quebrar essa demonização", discursa o pai de santo, que é também xamã da Aldeia Ciclo das Tradições.

    No dicionário Houaiss, uma das definições de exu, de uso informal, é "espírito maligno; diabo, demônio".

    Filho de uma família católica praticante, o pai de santo que descobriu a Umbanda aos 17 anos diz incorporar "o exu mágico, guardião, guerreiro, aquele que faz a comunicação entre as trevas e a luz".

    Alexandre usa outras imagens para traduzir as várias facetas da entidade espiritual cultuada na Umbanda e no Candomblé: "Exu é também o lixeiro, aquele que faz o trabalho sujo, vai buscar coisas mais pesadas. É ainda jocoso, brincalhão, mas se necessário é o policial, dá porrada no bom sentido".

    CURA E DESOBSESSÃO

    A missão de pai Alexandre, ao evocar os espíritos naquela noite, era a de afastar entidades negativas em sessões de desobsessão e tratar doentes em giras de medicina.

    Lara era a "entendida" do nosso trio. Acostumada a beber na fonte de vários "ismos" em sua rica espiritualidade pós-moderna, ela vai do budismo ao xamanismo, fazendo escalas onde mais possa alimentar sua fé.

    Ela se apega a Deus, nas forças da natureza e da ciência, ao se lançar com amor e determinação na busca de tratamento e alento para uma doença que bateu à porta da sua casa sem avisar.

    No meio da multidão de branco do terreiro, minha amiga encontra uma senhora que se dispõe a fazer sessões de reiki em seu marido. A prática oriental busca restabelecer o equilíbrio físico, espiritual e emocional por meio da imposição de mãos.

    Passa de meia-noite, quando chega a hora de Manfred ser levado à gira de cura comandada por pai Alexandre.

    Meu amigo e sua mulher se postam à frente do Seu Sete, em uma sala cheia de médiuns. Fico mais atrás, de onde observo os rituais.

    O casal leva passes de vários guias, naquele incessante ato de passar as mãos repetidas vezes ao redor e acima da pessoa para troca de energia ou cura pela força mediúnica.

    Entre os os médiuns que trabalham no caso de Manfred está Bruna/Raquel, que já havia feito sua iniciação mediúnica. Ela chacoalha o corpo bem próximo dele, assim como outros assistentes de pai Alexandre.

    "Aqui ela não é Bruna, um nome artístico. É Raquel Pacheco, médium e filha do santo", explica ele. "A Umbanda não pede RG. Não existe celebridade no terreiro."

    EMBRANQUECIMENTO

    Raquel é uma dos 600 médiuns da casa. Chama a atenção a quase ausência de negros e o perfil sociocultural dos frequentadores do terreiro.

    "Hoje em dia, a Umbanda está mais branca, assim como o Candomblé, enquanto os negros migraram em grande número para as igrejas evangélicas", constata Alexandre, que abandonou a universidade no último semestre. "Tem estudos sobre isso. É a morte branca do feiticeiro negro."

    Outro fenômeno visível é a classe média saindo do armário. "Antes, ela se escondia, tinha vergonha e agora se mostra, se assume umbandista."

    No último censo da Casa de São Lázaro, realizado há uns dois anos com cerca de 300 pessoas, 85% dos frequentadores tinham nível universitário.

    "Minha ex-mulher, mãe da minha filha de 17 anos, é doutora em antropologia. Ela dá aula na Unifesp e é mãe de santo aqui no terreiro", exemplifica Alexandre.

    É a deixa para falar como o ex-coroinha passou a bater tambor. Ele conta que o seu primeiro sobrinho nasceu com Síndrome de Down. Aos três meses, teve uma complicação e foi internado em estado grave.

    Ao ver o choro da mãe e o desespero do irmão, pediu a uma amiga o endereço de um centro espírita próximo ao hospital.

    "E a Umbanda estava na minha lista negra. Para mim, era coisa de gente sem cultura, que faz maldade para os outros e fanáticos que matam galinha preta", relata. "Existe esse lado, mas feito por gente que se utiliza do nome da Umbanda."

    Logo naquele primeiro contato, os preconceitos do jovem Alexandre ruíram, segundo ele. "Quando coloquei o pé no terreiro, foi aquela sensação de pertencimento."

    Alexandre diz que deu "uma pirada". "Foram fazer uma limpeza em mim. Quando vi estava lá chacoalhando, sem entender nada."

    O sobrinho saiu logo do hospital, como um Preto Velho previra, e o tio não deixou mais a Umbanda. "Eu fui buscar o Diabo e encontrei Deus."

    O neoconvertido levou três semanas para contar para a avó portuguesa e matriarca da família que mudara de religião. Segundo ele, a resposta foi: "Vai, desde que não faças mal para ninguém."

    ALEMÃO NA UMBANDA

    A fama de Alexandre é de fazer o bem. É o que fez um grupo de alemães cruzar o atlântico para visitar o terreiro, trazendo entre eles um senhor doente.

    Foi da Casa de São Lázaro que Gabriele Hilgers saiu para fundar um centro de Umbanda na Alemanha. Há nove anos, a alemã veio ao Brasil pesquisar espiritualidade e depois voltou para a terra natal para abrir um terreiro, a Casa St. Michael, que atualmente funciona em Colônia, no oeste do país europeu.

    Um dos jovens alemães –louro, de olhos azuis e paramentado de branco e colares– entra em transe em uma das salas. A cena pode assustar os neófitos.

    O pai de santo, depois, afirma que não há o que temer. "Na Umbanda, incorporação não é possessão. Se uma pessoa começar a sentir chacoalhar, é só dizer ou pensar que não quer que aconteça nada que não vai acontecer. É uma parceria. Não é um estupro espiritual."

    Alexandre diz que no início se questionava. "Pensava: isso aqui é uma histeria coletiva, é coisa da minha cabeça. Mas achava o máximo. A fé vem do sentir e a Umbanda é sensorial."

    Depois do transe coletivo na primeira sala, Manfred é levado para uma outra, onde ocorre um ritual de cura reservado. "Deitado em uma maca e rodeado por pessoas em transe, senti uma forte paz e um sentimento de esperança e bem-estar", resumiu ele, sobre a experiência.

    BATISMO DE FOGO

    Retorno ao pátio e Seu Sete prepara um roda de fogo, ritual de purificação do qual participo pela primeira vez. Lara e Manfred fazem o mesmo rito na sequência.

    É chegada a hora de ir embora. Já eram 2h da madrugada quando deixamos a casa nos sentindo mais leves e com energia renovada, comentávamos no carro.

    Mais de um ano depois, reencontro Alexandre na festa dos 20 anos da Casa de São Lázaro, em um elegante clube privê.

    Na entrada, a primeira pessoa que vejo é Raquel Pacheco, agora na encarnação DJ. Eu me apresento e peço uma entrevista para falar sobre a sua iniciação na Umbanda e a ligação com a Casa de São Lázaro.

    Instantes depois da nossa rápida conversa, a famosa Bruna Surfistinha na pele de uma autêntica filha de Oxum iria assumir as pick-ups de uma noite de festa, em um modelito preto e de saltos altíssimos.

    Despojado e elegante, o pai de santo também estava de preto (blazer e camiseta), agora na pele de anfitrião de uma noite de gala.

    "Mais do que celebrar 20 anos dessa história, esta festa é um manifesto. É uma noite de gala, cheia de gente capaz, bonita, igual a todo mundo."

    MANIFESTO DE PAZ

    Em meio à uma nova onda de intolerância religiosa, ele fala de cultura de paz e de diálogo inter-religioso. "Todos são bem-vindos. O terreiro é frequentado por islâmicos, judeus, evangélicos. Tem padre, japonês."

    E lamenta episódios de ódio e violência. "A nossa casa já sofreu ataques, de estourarem a porta e entrarem xingando. Uma vez jogaram cacos de telhas, que cortam como vidro, com 500 pessoas lá dentro."

    A intolerância não é recente. "Tem ondas. No passado, a polícia entrava em terreiro, quebrava tudo e levava todo mundo preso debaixo de porrada. Já teve perseguição de católicos, evangélicos. Esse fundamentalismo absurdo é preocupante."

    Antes de nos despedirmos na festa, pai Alexandre quer notícias de Manfred e Lara.

    Conto que meu amigo continua na luta, entre sessões de quimioterapia e cuidados da competente equipe do Hospital A.C. Camargo e de seus médicos na Bahia, onde vive.

    Ele também não descuida dos cuidados espirituais e emocionais, essenciais nessa dura e corajosa caminhada.

    Manfred já foi a Abadiânia, domínios do médium João de Deus, faz uso de terapias alternativas e se cerca do amor da família e dos amigos para ir driblando como um guerreiro o câncer e os efeitos colaterais dos tratamentos, sem reclamar de nada.

    No caso do meu amigo, o milagre da cura não veio até o momento. "É o primeiro grande ensinamento: lidar com a nossa onipotência", diz Alexandre.

    "Na Umbanda, não curamos ninguém. Somos ferramentas para auxiliar um processo de busca de consciência, entendimento e transformações que pode possibilitar a cura ou não."

    Ele afirma que já viu pessoas se curarem de câncer e outros males na Casa de São Lázaro. "Outros vão morrer. É a grande roda. A senda de cada um."

    Mas, como santo de casa, ele acredita ter feito um milagre recente. Aos 71 anos, sua mãe esteve entre a vida e a morte no ano passado.

    "Ela ficou 18 minutos dada como morta no hospital." Quem a trouxe de volta? Ele pergunta e ele mesmo responde: "Exu, eu tenho certeza, embora como católica minha mãe acredite que tenha sido Deus."

    Para Alexandre, o nome não importa. "Na Umbanda, a gente pede para as almas, as almas pedem para os santos, os santos pedem para a Deus. Todos que estão em nome de Deus são Deus." Amém ou axé.

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    por Eliane Trindade

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    É editora do Prêmio Empreendedor Social. Aqui, mostra personagens e fatos dos dois extremos da pirâmide social. Escreve às terças, a cada duas semanas.

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