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    Rede Social - Eliane Trindade

    'No terreiro, nunca me trataram como Bruna Surfistinha', diz Raquel Pacheco

    16/02/2016 02h00

    Depoimento a
    ELIANE TRINDADE

    Em 2013, Raquel Pacheco, que ficou conhecida como Bruna Surfistinha ao relatar sua vida de garota de programa, foi batizada na Umbanda.

    Filha de santo e médium da Casa de São Lázaro, na zona sul de São Paulo, ela diz ter deixado preconceitos de lado e ter se encontrado na religião afro-brasileira.

    Foi no terreiro que teve alento quando descobriu a morte do pai em 2011, com quem não falava desde que saíra de casa, deixando para trás a vida de garota classe média.

    Leia abaixo seu depoimento à coluna.

    *

    Cheguei ao terreiro de forma inusitada. Não tinha contato com meus pais desde que tinha saído de casa, em 2002.

    Em agosto de 2011, tive um sonho com a minha mãe. Ela aparecia sentada na sala, ao redor várias caixas de papelão, onde guardava livros e objetos. Percebi que ela chorava querendo contar algo.

    Acordei assustada, com angústia. Eu era casada na época e disse ao meu marido: 'João, aconteceu alguma coisa com meu pai'. Ele disse que era só um sonho.

    Contei para minhas amigas, mas todo mundo me tranquilizava. Uma delas frequentava a Casa de São Lázaro e me chamou para tomar um passe. Só que eu tinha um pé atrás com a Umbanda, aquele preconceito de mexer com bicho, macumba.

    Na sexta, ainda estava muito angustiada, precisava falar com um guia espiritual. Minha amiga me levou à gira [sessão espírita] de exu. E eu sempre tive pavor de exu. Morria de medo de Pombagira. Quando vi a corrente de médiuns, comecei a me emocionar, me arrepiei toda.

    Senti uma paz que há muito não sentia. Tomei passe com exu mirim [entidade que se apresenta como criança].

    Contei o sonho e ele pediu o nome completo dos meus pais, escreveu em um papelzinho e falou: 'Tia, aconteceu uma coisa que não posso contar. Você vai ter que procurar sua mãe e saber por ela.'

    Na mesma hora, eu disse: 'Meu pai morreu'. Ele não falou nada e se despediu. 'Na segunda, quero a tia aqui de novo.' Passei o fim de semana naquela: ligo ou não ligo.

    Tinha certeza de que tinha acontecido algo com meu pai. Ao mesmo tempo, me senti confortada, com uma sensação de 'aqui é o meu lugar'.

    Na segunda, esperei o João chegar em casa e finalmente liguei para minha mãe. Ela estava com uma voz estranha, parecia dopada. Eu falei: 'Mãe'. Ela respondeu: 'Raquel?'. Durante a conversa ela não se referiu nenhuma vez a mim como filha.

    Contei do sonho e também que tinha ido ao centro. 'O guia me me pediu para entrar em contato com a senhora. Eu quero saber.' Foi quando ela falou: 'Infelizmente, o Eduardo desencarnou na segunda da semana passada.'

    Meu sonho foi na terça, na data do enterro. Foi uma batalha que eu perdi. Sempre tive esperança de reencontrar meus pais, de pedir perdão. Minha mãe disse que me procuraria depois que passasse o luto. Já faz quase cinco anos e nada por enquanto.

    Eu fiquei muito mal. Pensei em me jogar da janela. Desespero mesmo. Aí veio aquela frase: 'Tia, vou te esperar na segunda aqui.' Cheguei ao terreiro chorando muito. Uma mãe de santo viu meu desespero, largou a prancheta e me deu um abraço de mãe.

    Um abraço que me colocou de volta no lugar e me mostrou o amor que eu podia encontrar ali. Naquela noite, tomei passe e o Caboclo me tranquilizou. Disse que meu pai estava amparado, na luz.

    Um mês depois, teve a despedida de uma auxiliar do pai Alexandre [Meireiles, pai de santo e líder da Casa de São Lázaro]. Foi a primeira vez que eu incorporei. Estava numa roda, quando caí no chão. Meu coração acelerou e pensei que fosse morrer. Os guias me ajudaram.

    Eu incorporei na Pombagira. E foi uma experiência deliciosa. No começo de novembro, Seu Sete [uma das entidades que Alexandre Meireles incorpora] me chamou e disse: 'Dona Raquel, está na hora de a senhora vestir o branco, entrar na corrente e fazer o desenvolvimento da sua mediunidade.'

    Foi emocionante a primeira vez de branco no terreiro. É uma experiência de paz. Sou filha de Oxum e fui batizada em 2013.

    A Casa de São Lázaro foi um recomeço, um reencontro comigo mesma. Considero que há uma Raquel antes e outra depois da Umbanda. Estou mais tranquila, feliz, em paz.

    O terreiro é um dos poucos lugares que eu me sinto Raquel mesmo. Nas correntes, os médiuns nunca faltaram com respeito comigo. Nunca me trataram como Bruna. Sou Raquel desde o primeiro dia.

    Claro que as pessoas da assistência me olham, muitas me perguntam: 'Ah, você é Bruna?'. Eu respondo: sou e tal. Pedem para tirar foto.

    A Umbanda preencheu um vazio muito grande dentro de mim: a falta de fé. Nunca tinha me identificado com uma religião. A cada gira, o médium acaba se conhecendo mais e valorizando mais a vida. Parei de reclamar dos meus problemas, de meus pais não me aceitarem. Tenho saúde perfeita, uma vida profissional bacana como DJ.

    Quando estou auxiliando os guias, vejo muito sofrimento. Gosto de fazer desobsessão. É puxar os obsessores das pessoas. Me faz muito bem ajudar e ver o processo de tratamento.

    Já vi gente chegar querendo se matar, com depressão profunda. Após passar pelo guia, você vê essa pessoas sorrindo, querendo viver.

    Eu me sinto muito mais forte. Cuido de mim espiritualmente. Não tenho vergonha nem medo de me assumir como umbandista. Tem gente que olha feio, outros são curiosos. Sei que o preconceito é muito grande, mas eu enfrento. Não é a primeira vez.

    A Umbanda e a Casa de São Lázaro são minha fé, conforto e força espiritual. Sou grata ao pai Alexandre por me permitir fazer parte da corrente de médiuns e por ser meu mestre.

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    por Eliane Trindade

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    É editora do Prêmio Empreendedor Social. Aqui, mostra personagens e fatos dos dois extremos da pirâmide social. Escreve às terças, a cada duas semanas.

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