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    Rede Social - Eliane Trindade

    Opinião e memória nos tempos do Facebook

    15/03/2016 02h00

    O tribunal do Facebook decretou um novo pecado capital: não ter opinião.

    Assim como das profundezas dos seus algoritmos, a rede criada por Mark Zuckerberg se arvora a gerenciador de nossas memórias.

    E os dois movimentos nos levam a questões essenciais na era da hiperconexão.

    O "não sou obrigada a opinar" de Gloria Pires em uma transmissão televisiva foi um tsunami de proporções apocalípticas nas redes sociais há algumas semanas.

    Não vou me ater a uma das questões centrais, que é o papel de alguém contratado para comentar e, portanto, com dever profissional de emitir suas impressões e trazer informações adicionais sobre o tema, no caso os concorrentes ao Oscar.

    Dito isso, a atriz teria obrigação de ir além de lacônicos adjetivos: "incrível!" e "bacana". E das indefectíveis frases curtas: "Não vi", "Não sei opinar".

    No entanto, o que causou tamanha celeuma, típica dos nossos dias de cólera em tempos de Facebook, é o fato de atriz se abster da verborragia vazia e inconsequente que costuma invadir as nossas timelines cotidianamente.

    E nesses tempos bipolares, Gloria Pires foi sumariamente condenada pelo que disse e pelo que deixou de dizer. É uma verdadeira inquisição virtual com tudo e com todos.

    Um lixo que contamina a mente e o dia a dia. É o que me leva tantas vezes a pensar seriamente em suicídio digital, apagando todos os meus perfis.

    Confesso que eu ficaria muito feliz caso o espírito de Gloria Pires em noite de Oscar baixasse no monte de "idiotas alçados a porta-vozes da aldeia", como bem definiu Umberto Eco, ao lançar o seu último livro "Número Zero".

    Todos devemos ter voz, sim, mas a opinião deveria ser manifesta ou restrita àqueles que de fato se aprofundaram nos temas e se dedicaram a formar uma.

    Ou seja, antes de abrir a sua boca no megafone das redes sociais, pense, reflita, procure saber, filtre informações.

    Nessa onda de opinar de pronto e a qualquer custo proliferam veredictos instantâneos.

    É a síndrome de Raul Seixas ao contrário: um monte de gente que tem aquela velha ou nova opinião formada sobre tudo.

    Virou uma obsessão nas redes se posicionar sempre: desde sobre o comportamento da Gloria Pires no Oscar até a crise política, passando por temas como aborto, feminismo, racismo, etc.

    Éramos milhões de técnicos de futebol e agora nos convertemos também em cientistas políticos e até em sanitaristas e epidemiologistas.

    As redes estão formando pseudoespecialistas em ciências políticas, artes, medicina e por aí vai, sem que se consiga avançar nas discussões nem entender a complexidade dos fenômenos e da sociedade atual.

    Um fator que tem contribuído para exacerbar a violência verbal neste eterno Flá-Flu sobre qualquer tema.

    Opinar não é metabolizar os fatos pelo fígado e expelir os dejetos de sua bílis na cara de quem teve o azar de abrir o Facebook justo naquele momento.

    Outro incômodo, esse mais sutil, é causado por uma nova interação proposta por Mark Zuckerberg e sua turma.

    É uma espécie de "memorator tabajara". Algumas vezes, é hilário a prepotência fria "do grande irmão" do Face me rememorando que minha amizade com fulano ou sicrano completa tanto anos, medidos apenas pela conexão via redes sociais.

    Sabe de nada inocente: ainda bem que minha vida começou bem antes do Facebook, Instagram e Twitter, de forma que as minhas memórias mais especiais não estão registradas nos meus perfis públicos.

    São totalmente forçadas as tais "lembranças" que não são lembradas pelo sujeito que as viveu, ou melhor, as postou.

    A diferença se faz necessária, uma vez que tantos perdem momentos preciosos registrando os acontecimentos para postar em seus perfis em vez de degustá-los.

    Vide o mar de smartphones gravando cada segundo do último show dos Rolling Stones, o que fez Mick Jagger concluir que "em São Paulo, as pessoas assistem ao show pelo celular".

    Enfim, a maioria dessas recordações propostas pelo Facebook não passou passou pelo filtro da verdadeira memória que é acionado pelos afetos, cheiros, sabores... Essas são as memórias que eu quero compartilhar sempre!

    O "memorator" é mais um exercício de olhar para o próprio umbigo nesta incessante busca de "likes" (leia-se aceitação), que se converteram as relações na palco do Face & companhia.

    Nem que para isso tanta gente caia na vaidade, revestida de arrogância, de bradar opiniões e jogar para a sua plateia, mesmo expondo preconceitos e intolerância.

    E eles vão se perpetuando como memórias a serem recompartilhadas quando se faz o login a cada dia.

    Somos sempre recebidos por uma "lembrança" a compartilhar. Algumas, de fato, são dignas de recordação. Outras, melhor esquecer.

    Foi o Facebook, por exemplo, que me recordou em 11 de março que há dois anos estreava a coluna Rede Social. Uma data que corria o risco de passar batida em meio ao frenesi da semana de trabalho.

    Recordação que compartilhei com meus amigos virtuais, antes de ser bombardeada pelas verdades absolutas postadas sem cerimônia e compartilhadas sem filtro nessa imensa praça global chamada internet.

    rede social

    por Eliane Trindade

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    É editora do Prêmio Empreendedor Social. Aqui, mostra personagens e fatos dos dois extremos da pirâmide social. Escreve às terças, a cada duas semanas.

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