• Colunistas

    Saturday, 28-Sep-2024 19:37:34 -03
    Rede Social - Eliane Trindade

    Recicladora de sonhos: de Candelária a camarote olímpico, via Cidade de Deus

    16/08/2016 02h00

    Enquanto os atletas se aquecem na cama elástica para a final da prova de ginástica de trampolim, Claudete Costa, 36, instala-se na suíte 51 da Arena Olímpica com seu largo sorriso e sua longa cabeleira trançada em um penteado afro.

    "Eu nem imaginava que seria um camarote. Quando cheguei aqui, vi tudo chique. Quero aproveitar todos os momentos", diz a catadora de material reciclado, como se apresenta, e não de lixo.

    O discurso é de líder da categoria. Claudete é presidente da cooperativa Ecco Ponto, que venceu a concorrência para prestar serviço de reciclagem de resíduos sólidos na Olimpíada.

    Com o celular para as selfies à mão, ela pede ao garçom uma tacinha de prosseco. "Aqui, o pastor libera", brinca a evangélica que vive seu dia de princesa na Rio-2016.

    Claudete deu um tempo na pauleira de recicladora contratada (diária de R$ 86) –em turnos diários durante os Jogos que vão de 16h a 1h da madrugada– para assistir a uma disputa de medalhas no sábado (13) a convite do Comitê Organizador.

    "Eu sei me comportar em lugar chique assim", diz ela, diante dos olhares de seguranças e recepcionistas para a sua camiseta com a palavra Recycle estampada no peito.

    A indumentária identifica os 240 catadores que colocam a mão na massa para reciclar as estimadas 7.000 toneladas de resíduos descartados em todas as arenas durante os Jogos Olímpicos e Paraolímpicos do Rio.

    "Nós ganhamos o edital, concorrendo com grandes empresas, em um contrato de R$ 1,3 milhão", explica Claudete, cuja cooperativa de catadores coordena todo o trabalho de outras 33 associadas nos locais de competição: Vila Olímpica, Deodoro, Maracanã e Sambódromo.

    "O meu grupo de sete mulheres trabalha no turno do meio da tarde até o começo da madrugada na Arena Carioca 1", relata. "Os garis trazem o material reciclado, fazemos uma pré-seleção para mandar para a cooperativa."

    Lá, 40 catadores fazem o processo final de reciclagem, prensagem e embalagem do material vindo de todos os locais dos jogos.

    A expectativa é a de que, além do valor das diárias, cada catador embolse até R$ 2.500 com a venda do material recolhido.

    Processar o "lixo olímpico" é um momento de ouro na vida dos catadores. "Costumo dizer que a matéria-prima aqui é rica, de um material diferenciado em relação ao dia a dia. Por ser um megaevento, a gente recolhe muito alumínio, plástico e papelão. É um momento de riqueza."

    Fartura contabilizada não em forma de medalhas, mas de latinhas, garrafas PET e embalagens descartadas.

    SALA VIP DOS JOGOS

    Claudete se orgulha de estar no camarote, degustando presunto cru importado e com todo conforto, como representante do Movimento Nacional de Catadores, que também atuou na Copa do Mundo.

    Seu passaporte para a sala VIP dos Jogos, no entanto, foi carimbado ao longo dos sete anos que morou nas ruas do centro do Rio de Janeiro, onde tirava do lixo o seu sustento.

    Sem-teto dos 8 aos 15 anos, Claudete sobreviveu à chacina da Candelária, episódio em que dez jovens (oito menores de idade e dois maiores) foram assassinados por policiais militares na noite de 23 de julho de 1993.

    Ela tinha 13 anos, quando viu os colegas serem mortos em um lugar onde também costumava dormir ao relento, com a mãe e os três irmãos mais velhos, desde que fugiram de casa e do jugo de um pai violento.

    "Meu pai era alcoólatra e espancava minha mãe. Por conta da violência doméstica, ela fugiu de casa comigo e outros dois filhos. Fomos parar no centro da cidade."

    Era o começo de sua história de vida na rua, quando dormia debaixo de uma marquise da rua Uruguaiana: "Durante o dia, minha mãe vendia vela e rosa na porta da igreja, enquanto eu e meus irmãos pedíamos esmola. De noite, a gente ajudava ela na reciclagem de papelão".

    Do camarote olímpico, onde contemplou o bielorrusso Uladzislau Hancharou conquistar a medalha de ouro no trampolim, ela resume sua trajetória: "De pedinte a catadora, de catadora a recicladora. Tenho muito orgulho da minha profissão, é dela que tiro meu sustento e consigo dar uma vida digna para minha família".

    No meio do caminho entre pedir esmola no sinal e ser presidente de cooperativa, Claudete sobreviveu à miséria e à violência, destino que ceifou a vida de seus colegas da Candelária e de tantos outros.

    "Os meninos mortos na Candelária eram todos meus amigos. Eu tinha de 12 para 13 anos quando teve chacina. Não fui uma das vítimas, pois naquela noite minha mãe me botou para limpar muito papel e não deu para eu dar uma fugida para brincar."

    Os garotos assassinados eram seus amigos de infância. "A gente brincava de pique-esconde, de salada mista, aquela brincadeira de dar uns beijinhos. Tinha também a guerra de comida. A turma toda ia na lanchonete, comprava hambúrguer, batata frita e refrigerante e fazia guerrinha entre nós. A gente se divertia, mesmo em momento vulnerável, de rua."

    Claudete sobreviveu para contar esta e outras histórias no documentário "Ônibus 174" (2002), de José Padilha, que mostra a trajetória de Sandro Nascimento, protagonista de um sequestro na linha que dá nome ao filme sobre o episódio trágico que resultou na morte do ex-menino de rua e da refém Geísa Gonçalves, em 2000.

    A catadora, no entanto, não viveu só tragédias. Foi na rua que Claudete conheceu seu primeiro amor. "Aos 15 anos, eu me perdi, ou melhor, me achei, quando conheci o meu ex que é o pai dos meus três filhos."

    Ela descreve o companheiro com quem viveu por oito anos como um playboyzinho que fugiu de casa para se divertir. "Ele queria ter liberdade. Tinha uma vida bem mais legal que a minha. Foi ele que me ensinou a ler, a ver as horas em relógio de ponteiro."

    HERDEIRA DA RECICLAGEM

    O filho do meio morreu aos 7 anos, atropelado em frente à escola. Claudete batalha para deixar os outros dois –Yago, 21, e Jennifer, 13– bem longe das dificuldades e perigos das ruas.

    "Quando digo para minha filha que ela é herdeira da reciclagem e vou botar ela para catar papel, Jennifer só responde: 'Tá amarrado, em nome de Jesus'. Ela não quer saber da minha vida de catadora. Graças a Deus, posso dar aos meus filhos a oportunidade que eu não tive para que eles tenham a vida que querem ter."

    Ela também quer mais da vida, após conquistar a casa própria. Mora em um sobrado de três andares na Cidade de Deus, para onde foi levada por um holandês que desenvolvia projetos sociais na comunidade.

    Claudete completou o ensino fundamental e sonha em fazer faculdade, quem sabe até engenharia ambiental. "Já quis ser modelo e atriz, mas botei os pés no chão e hoje sou realizada como uma liderança dos catadores."

    Dois de seus irmãos "se perderam no caminho", um está preso por tráfico e outra, em liberdade condicional, após cumprir parte da pena pelo mesmo crime.

    A mãe, que ela chama de guerreira da reciclagem, morreu aos 51 anos. Teria orgulho de ver a segunda filha ocupar hoje o lugar que já foi de Tião Santos, liderança dos catadores cariocas que ficou famoso após o sucesso de "Lixo Extraordinário". O documentário mostra o trabalho do artista plástico brasileiro Vik Muniz com catadores de Jardim Gramacho.

    Claudete foi eleita no terceiro congresso da categoria em 2013. "Sou uma mulher negra, que mora em comunidade, e sofro muito preconceito por estar em um papel de destaque", afirma.

    A luta também é contra o estigma. "Por mais que dê entrevista, sempre tenho que repetir que não somos catadores de lixo, mas de material reciclado. É uma luta árdua, tenho esperança de mudar essa cultura. Precisamos ser respeitados."

    O reconhecimento vem na forma de pequenas e grandes conquistas, como ter sido convidada para carregar a tocha olímpica no subúrbio de Oswaldo Cruz, em 4 de agosto.

    No primeiro dia de folga depois do início dos jogos, na quinta-feira (11), Claudete assistiu das arquibancadas uma competição no Velódromo, com ingressos dados pela Coca-Cola, patrocinadora da Rio-2016. "Foi show de bola. Que lugar lindo! Queria que minha filha tivesse lá comigo."

    A cooperativa presidida pela Claudete é uma das mais de 300 apoiadas pelo Instituto Coca-Cola, através do programa Coletivo Reciclagem.

    Apesar do crachá dar livre acesso a várias área do Parque Olímpico, ela diz que não costuma passear pelas arenas. "Eu não saio da triagem. Tô na Olimpíada trabalhando. É muito orgulho."

    Estava em plena atividade de separação de latinhas e garrafas do lixo quando ficou sabendo da conquista da primeira medalha de ouro do Brasil.

    "Foi o motorista do caminhão de lixo da Comlurb quem falou: 'Caraca, até que enfim um ouro'." E assim Claudete e as demais catadoras vibraram com a medalha que Rafaela Silva, do judô, conquistara ali pertinho minutos antes. "E, ainda por cima, é uma menina judoca lá da Cidade de Deus. Também negra."

    Claudete, a exemplo da campeã olímpica, define-se como "a superação em pessoa". "Foi uma emoção ainda maior ver alguém se destacar tanto mesmo morando em uma comunidade e sofrendo preconceito a vida inteira. Tem muitas Rafaelas e Claudetes por aí."

    Chamada - Rio 2016

    rede social

    por Eliane Trindade

    rede social

    É editora do Prêmio Empreendedor Social. Aqui, mostra personagens e fatos dos dois extremos da pirâmide social. Escreve às terças, a cada duas semanas.

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024