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    Rede Social - Eliane Trindade

    Vida, tecnologia e arte na peleja de ex-coveiro e agrônoma em cemitério

    13/09/2016 02h00

    "Nunca refleti tanto sobre a vida quanto agora que trabalho com a questão da morte", filosofa Lúcia Salles, 54, agrônoma que é superintendente do Serviço Funerário do Município de São Paulo desde 2014.

    Sentada ao pé de um túmulo em uma das alamedas arborizadas do Cemitério da Consolação, a paulistana filha de duas famílias tradicionais sepultadas ali –os França Pinto e os Withaker– cumprimenta Francivaldo de Almeida Gomes, o Popó, cearense que veio de Crateús há três décadas para ajudar a "construir" São Paulo.

    O ex-ajudante de pedreiro de 49 anos encontrou no cemitério uma razão para viver e se reinventar profissionalmente entre túmulos e mausoléus que se tornaram referência em arte cemiterial.

    Há uma década, Popó trocou o ofício de coveiro, para o qual prestou concurso 16 anos atrás, pelo de guia de um museu a céu aberto em plena avenida da Consolação, uma das artérias viárias da metrópole.

    "Quando a memória é de todos, ela é coletiva, vira história. Isto aqui é um parque de memórias, não tem nada de tétrico", define Lúcia, responsável pelo renascimento do cemitério como espaço cultural e de interesse artístico.

    Ela aponta para as árvores frondosas, os pássaros e as obras de artes que circundam e enfeitam os jazigos da Consolação, um dos 22 cemitérios da cidade sob a sua administração.

    Um cenário que recebeu eventos culturais como o Cinetério, exibições de filme na madrugada na Virada Cultural, e saraus em datas especiais, como Dia das Mães, com a orquestra do Theatro Municipal.

    A superintendente do Serviço Funerário fala com empolgação sobre o potencial do cemitério da Consolação como museu ao ar livre. Ela cita outros exemplos bem-sucedidos no mundo, como o Père-Lachaise, em Paris, e o da Recoleta, em Buenos Aires.

    "Muros em cemitério para quê", indaga Lúcia. "Costumo brincar e repito sempre que alma atravessa parede. É preciso destruir os muros físicos e os do pensamento. Deixar de ocupar de forma cidadã e não visitar tais espaços é uma segunda morte, o esquecimento."

    Daí o reconhecimento ao "trabalho invisível" dos 600 coveiros, que enterram 200 mortos por dia na cidade de São Paulo.

    A tarefa executada pelos sepultadores toca a vida de cerca de 2,8 milhões de moradores a cada ano, estima Lúcia, levando em conta que cada velório atrai uma média de 30 pessoas e são realizados 82 mil enterros anuais na cidade de São Paulo.

    CONDECORAÇÃO

    Em 6 de setembro, a agrônoma e o ex-coveiro se encontraram novamente numa cerimônia solene na Câmara Municipal de São Paulo, na qual Popó ganhou o Título de Cidadão Paulistano.

    A homenagem, por meio de uma lei proposta pelo vereador Jamil Murad (PC do B), premia a dedicação e o conhecimento enciclopédico do cearense.

    Popó é capaz de desfiar de memória informações biográficas, datas de nascimento e morte de duas centenas de personalidades famosas e personagens históricos sepultados em mausoléus e jazigos do cemitério fundado em 1858.

    "Faço uma homenagem a São Paulo quase todos os dias da semana dentro deste cemitério ao guiar visitantes interessados nesta riqueza artística e histórica", afirma o funcionário que sucedeu na nobre função o historiador Délio Freire dos Santos, morto em 2002.

    Para estar à altura da missão, o pupilo do antigo administrador do Cemitério da Consolação voltou para os bancos escolares. Concluiu o ensino médio, ao mesmo tempo que frequentava a Biblioteca Mario de Andrade para aprender mais sobre as personalidades sepultadas na mais importante necrópole de São Paulo.

    "Eu tenho muito amor por esta cidade. Por isso aprendi tanto e guardo tantas informações na memória."

    Popó imposta a voz e desafia os visitantes a listar nomes que contam a história da Pauliceia e estão ali sepultados, entre eles expoentes da Semana de Arte Moderna de 1922, o compositor Paulo Vanzolini e outros artistas e tantos engenheiros, políticos e empresários que as novas gerações só conhecem como nome de rua.

    A visita guiada tem a duração da curiosidade de cada visitante. São vários roteiros, que já atraíram estimadas 10 mil pessoas, que podem escolher passeios como percorrer os túmulos de figuras históricas ou conhecer os vários tipos de rocha usadas em jazigos suntuosos.

    PASSADO E FUTURO

    A nossa primeira parada é o Mausoléu dos Chapeleiros. O ex-ajudante de pedreiro dá uma aula sobre a São Paulo antiga espelhada no brasão oval da década de 80 do século 19 que enfeita o túmulo coletivo.

    "Este baixo relevo representa um córrego que existiu na cidade, o Anhangabaú, que deu origem ao vale do mesmo nome. Temos aqui também a chaminé da fábrica de chapéus e uma plantação de ervas onde hoje é o viaduto do Chá", explica Popó.

    Um dos mais belos do cemitério, o mausoléu foi erigido a mando do alemão João Adolfo, dono de uma fábrica de chapéus, para servir de última morada para funcionários.

    São informações desfiadas com uma certa cerimônia por Popó, mas que também passaram a estar contidas em QR Codes, códigos de barras que podem ser lidos pelo celular e foram espalhados por 200 túmulos de personalidades sepultadas no Consolação.

    Basta apontar o smartphone para o código fixado no túmulo para que sejam carregados dados sobre o dono do jazigo, seus feitos e obras.

    O concorrente tecnológico seria uma espécie de Uber para o guia do cemitério? Popó ri da comparação, mas segue confiante no papel que representa. "Tem espaço para todos", diz, diante do inevitável.

    O cemitério passará a dispor de conexão Wi-Fi, que permitirá aos visitantes se utilizarem de um espécie de mini-Waze para se localizar na necrópole.

    Uma parceria com a Secretaria Municipal de Educação possibilitou uma agenda semanal de visitas programadas de estudantes ao cemitério.

    Por meio de um convênio firmado com a PUC-SP, a administração funerária passou a olhar de forma multidisciplinar as demandas de um serviço público complexo e essencial, que envolve luto, história, restauro e direito.

    Entre os resultados do programa de extensão universitária, está a preparação de uma cartilhas sobre o luto.

    "É uma demanda que chegou via o programa São Paulo Carinhosa para ajudar as escolas a lidar com o luto. Se o tema já é um tabu para os mais velhos, imagine para crianças", diz Lúcia. "Estamos fazendo cursos, jornadas e material pedagógico para ajudar o professor a tratar do tema da morte, não só quando ela acontece, mas quando ela é memória."

    QUEBRAR PARADIGMA

    A fala da chefe é a deixa para Popó mostrar como o périplo pode ter um caráter educativo. Um bom exemplo é parar com os alunos diante do túmulo do escritor Monteiro Lobato, sepultado ali em 1948. Uma parada perfeita para aprenderam mais sobre o autor de "Reinações de Narizinho" e seus personagens como a boneca Emília e o Saci.

    Enfim, visitar um cemitério pode ser divertido, educativo e até inspirador?

    Lúcia responde. "Temos que quebrar paradigmas. Sem dúvida, cemitério é também é sinônimo de despedida, de sofrimento", reconhece a superintendente.

    "No entanto, o saudável é o luto virar memória. Virar um sorriso de lembrança de coisas boas, o que faz os mortos continuarem parte da vida de outra forma, no coração e na cabeça. Isso é o parque da memória."

    E como tal, os cemitérios também servem para nos lembrar da nossa finitude e até para brincar com os clichês em torno da morte.Na Virada Cultural de 2014, por exemplo, José Mojica Marins, o Zé do Caixão, foi convidado a contar histórias de terror no Cemitério da Consolação a partir da meia-noite.

    "Ele é uma figura emblemática. Fez uma palestra que não podia ser de mais luz", define Lúcia, imitando a voz tétrica e tentando se recordar das palavras de Mojica naquela madrugada: "Você que se achava o máximo em vida? Você que fazia seus empregados se curvarem, agora está na laje fria", ela repete.

    Como agrônoma de formação, Lúcia achou pertinente a descrição do processo de decomposição feita por Zé do Caixão em sua performance: "Sabe o que você é? Um verme!", frisou o ator e cineasta à plateia.

    Na mesma linha, a superintendente do serviço funerário encerra a entrevista.

    "Graças a Deus, todos nós viramos adubo. Só existe vida sobre a terra porque a ciclagem de nutrientes passou a ser eficiente. Faz parte da vida. E não é uma parte triste ou aflitiva. É renascimento. É um ciclo. O túmulo é um berço de nutrientes para um nova vida. O moderno não é se dizer do berço ao túmulo, mas do berço ou berço."

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    por Eliane Trindade

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    É editora do Prêmio Empreendedor Social. Aqui, mostra personagens e fatos dos dois extremos da pirâmide social. Escreve às terças, a cada duas semanas.

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