• Colunistas

    Monday, 29-Apr-2024 08:26:04 -03
    Rede Social - Eliane Trindade

    Bem longe do Facebook, a despedida precoce de uma amiga do 'face a face'

    15/11/2016 02h00

    Ela nunca foi minha amiga no Facebook. Até pelo fato de Antonietta Lauria não ter um perfil na rede social nem em outras comunidades desse mundão virtual.

    Em maio, um amigo comum me enviou uma mensagem privada pelo Messenger para compartilhar uma notícia com o sugestivo título "Para Não Esquecer", datada de 24 de abril de 2014, mas que ele, Moreno Toigo, só então havia escavado na internet.

    Um trecho nos dizia respeito e confirmava uma suspeita: "Sempre na ótica de valorização e implantação do Arquivo Histórico está a aquisição das cartas de dirigentes da ex-Democracia Cristã e também de arquivos privados (por exemplo, aquele de Antonietta Lauria, jornalista de "Il Manifesto", morta prematuramente).

    A nota secundária no artigo sobre o Istituto per la Storia della Resistenza e della Società Contemporanea da província de Livorno (Istoreco) confirmava a morte de uma caríssima amiga do "face a face", da vida.

    No caso de Antonietta Lauria, uma vida extraordinária. A trajetória de uma feminista, ambientalista, ativista de direitos humanos italiana.

    As várias facetas de uma mulher única, que na virada do século 21 ainda parecia estar voltando a pé de Woodstock, sem pressa de desembarcar em um mundo ao mesmo tempo hiperconectado e cada vez mais individualista.

    SUL DO MUNDO

    Anto nasceu no sul da Itália, mas vivia na Toscana, para onde seus pais se mudaram no segundo pós-guerra. Ali, ela encontrou sua turma entre os militantes de esquerda, todos comunistas "graças a Deus".

    Os rastros de sua trajetória ao longo de 62 anos de vida podem ser seguidos desde a sua morte em pastas de um arquivo público, um lugar que traz em seu nome a palavra que melhor definiu a minha amiga: resistência.

    Embora não tenha resistido a um câncer de ovário, descoberto já em metástase, Antonietta não era do tipo que se deixava vencer pela tristeza.

    Desenterrei na minha caixa postal uma de suas últimas mensagens enviadas a mim e a Patrícia Andrade, suas colegas de um curso de pós-graduação em Ciências Políticas na Universidade de Pisa, no agora longínquo 1993 (o ano da "Europa Unida", como canta Jovanotti, em uma das canções que fazem parte da trilha sonora daquele tempo mais que especial).

    Alguns trechos do e-mail resumem bem quem foi aquela socióloga que tinha a linda mania de ter fé na vida e de acolher a todos com seu sorriso e sua curiosidade em relação ao outro, qualquer que fosse a origem, a cor de pele ou o tamanho da conta bancária.

    DESPEDIDA EPISTOLAR

    Sua última mensagem eletrônica datada de 17 de julho de 2009 é, na verdade, uma bela carta de amor e de despedida. No longo e emotivo texto, Antonieta fala do tumor descoberto um ano antes, de morte, mas sobretudo de vida, amizade, esperança e liberdade.

    É daqueles registros que ficam impregnados nas nossas mentes e corações, que nos fazem rir e chorar a cada releitura.

    Em um trecho, ela lamenta: "Paradoxo dos paradoxos. Enquanto o planeta se aquece, o homem se esfria", ao se recordar do calor da nossa amizade, uma conexão entre "uma mulher madura do 'mezzogiorno', o sul da Itália, a parte menos desenvolvida da bota", e duas garotas de 23 anos recém-chegadas do Brasil, do sul do mundo.

    Patrícia e eu estamos lá na memória da "Viagem da sua vida", assim em letras maiúsculas, referindo-se à visita que ela nos fez, quando passamos uma temporada em Paris, após concluirmos o curso na Itália.

    Uma foto dela feita por uma de nós em Paris enfeita a casa de sua mãe e a reacende na retratada o desejo de colocar o pé na estrada de novo com a gente. "Desejo que possamos nos abraçar novamente!!! E ainda rir e viver felicidade juntas. Amo muito vocês".

    Antonietta escreveu sobre o calor do sentir, de compartilhar experiências e memórias, de desejar o melhor para quem se ama mesmo quando o universo lhe maltrata.

    "Espero ainda poder continuar doando a vocês duas a minha felicidade, que se manifesta mesmo agora em meio à tristeza. A vida é isso. O branco e o preto. Noite e dia. Mas enquanto se é capaz de ser feliz ao olhar um céu estrelado, então a vida dentro de nós existe, cresce, e assim, talvez, eu consiga mandar embora toda a tristeza".

    Dois meses depois de receber a carta, eu fiz uma viagem à Itália para visitar Antonietta. Ela havia se aposentado de um trabalho burocrático nos Correios, em razão da doença. E assim se transferira para a casa herdada dos pais em Casale Marittimo, uma daquelas cidadezinhas de sonho incrustadas entre as colinas toscanas.

    O vilarejo quase fantasma, com seus 1.067 habitantes, localizado na província de Pisa, abriga o estúdio do badalado fotógrafo Oliviero Toscani, que ganhou fama mundial com a campanha United Collors of Benetton.

    SET DE FILMAGEM

    Foi ali que a minha amiga encontrou a tranquilidade e o ar puro para se recuperar da quimioterapia. Ela me recebeu na residência de pedra, em uma ruela que vai dar no antigo castelo. Ocupava apenas dois cômodos, pois o restante havia alugado para a locação de um filme.

    Dormi no set de filmagens de "La Passione", de Carlo Mazzacurati, protagonizado pelo ator Silvio Orlando. É a história de um diretor em crise que se refugia em uma belo "paesino" nas colinas pisanas com o mar Tirreno como horizonte.

    A sinopse do longa servia como metáfora do momento de vida de minha amiga, protagonista de uma fuga para se redescobrir no berço da infância, dentro de um cartão-postal, cercada de beleza e silêncio.

    Tranquilidade quebrada pela trupe cinematográfica e também por mim, que trouxe a Casale Marittimo outros amigos. Moreno Toigo, um outro colega da Universidade de Pisa, e sua mulher, Michela, e os dois filhos, Elia e Cecilia, juntaram-se a nós em um passeio nostálgico e afetuoso.

    Nos dias seguintes, Antonietta e eu fizemos outros passeios revigorantes, como ir à praia ver o pôr do sol, e caminhadas pelas florestas de pinheiros, que acabavam sempre por nos levar de volta ao mar.

    A "pineta" era o cenário de outra preciosa recordação: as férias que passamos em um camping, em 1993, quando eu e Patricia fomos convidadas por Antonieta para ser monitoras de um grupo de 40 crianças vindas de Milão para curtir o verão na zona costeira da Maremma toscana.

    E assim se passaram 16 anos, quando me reencontro com Antonietta debilitada pela doença. O tempo cobrava sua conta. Fragilizada pela quimio, ela fazia esforço para parecer bem fisicamente. Os cabelos cresciam embranquecidos. A melancolia aparecia volta e meia em comentários sobre o passado, os amores, as frustrações.

    Ela chegou a dizer que estava especialmente feliz por poder me oferecer a distração do set de filmagens. Jantávamos sempre com seus amigos da produtora de cinema, em longas noitadas regadas a vinho, riso e ótimo papo.

    PESQUISA E PAIXÃO

    Quantos assuntos para colocar em dia. A intimidade não se perdera. Antonietta me mostrava seus apontamentos (escrevia compulsivamente, desde que a doença avançara), rememorava paixões e passagens ricas e dolorosas de sua vida.

    Uma delas foi a longa pesquisa no presidio da ilha de Elba, famosa por ter sido destino de Napoleão Bonaparte durante um curto e histórico exílio.

    Os presos políticos no cárcere em um forte da ilha eram o tema central da tese de graduação de Antonietta. Ela levaria quase duas décadas para finalizar o estudo, pois o trabalho acadêmico se converteu em chave para sua entrada na prisão que abrigava um dos seus grandes amores.

    Presa literalmente naquela paixão, a estudante de sociologia escreveu páginas e páginas de um futuro livro, nunca publicado, um vasto material que ela queria que eu levasse comigo para o Brasil.

    Caixas e caixas de manuscritos, que ela se dizia incapaz de organizar pelo sem número de emoções que suscitava a cada mergulho.

    "Esse é um presente que quero te dar", disse-me ela, emocionada. Eu respondi: "Não posso levar suas anotações comigo. É você quem vai escrever esse livro, tenho certeza".

    Não tinha. E cada vez que tentava sem sucesso saber o motivo do longo silêncio de Antonietta nos últimos quatro anos, eu me penitenciava por não ter trazido comigo aquele tesouro.

    Receber a confirmação da morte dela era algo esperado a qualquer momento. O surpreendente foi receber a notícia fúnebre em um artigo que ao mesmo tempo me dava pistas de onde seus arquivos pessoais estavam guardados.

    Era uma mensagem do universo para que eu "buscasse" o meu presente e fizesse a autora dos manuscritos renascer na minha escrita. Seria o meu presente para Antonietta, a minha amiga que lia "Il Manifesto" (para o qual colaborava) e circulava em um Citroën caindo aos pedaços que rodava há mais de quatro décadas.

    Era com o ele que a gente ia para a praia ou aos círculos culturais frequentados por intelectuais e imigrantes, naquela época chamados de "extra-comunitários", vindos de fora da Comunidade Europeia.

    Espaços que reuniam africanos, árabes e refugiados do leste europeu. Locais que Antonietta e sua turma ajudavam a manter como ponto de encontro da diversidade e da solidariedade, numa Europa que começava a viver a pressão migratória que ganhou contornos de diáspora de refugiados.

    PASSADO E FUTURO

    Ao garimpar as últimas mensagens trocadas por nós duas, eu me deparei com um e-mail de Patrícia, logo após o meu retorno daquela viagem sentimental à Toscana para visitar nossa amiga, no qual ela resumiu o impacto de ver que Antonietta estava se despedindo da vida.

    "Para mim, uma grande lição foi reforçada: a de que a maior sabedoria da existência humana é estar presente no presente, com força, coragem, doçura e, acima de tudo, generosidade diante da vida e da história que construímos cotidianamente."

    Antonietta é parte de um passado que se fez presente. Este é o primeiro capítulo de memórias, minhas, delas e nossas, que preciso resgatar em outra viagem à Toscana, ainda sem data marcada.

    Até breve, minha amiga. Desta vez, nosso encontro será entre as folhas amareladas de cadernos que resumem uma vida extraordinária.

    rede social

    por Eliane Trindade

    rede social

    É editora do Prêmio Empreendedor Social. Aqui, mostra personagens e fatos dos dois extremos da pirâmide social. Escreve às terças, a cada duas semanas.

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024