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    Rede Social - Eliane Trindade

    Refugiada ganha vida nova no Brasil, perde irmão e vira símbolo para a ONU

    12/09/2017 02h00

    Em 19 de setembro de 2014, Maha Mamo e os dois irmãos desembarcaram no Brasil pela porta aberta aos refugiados do conflito na Síria.

    Não era o caso dos três jovens filhos de sírios, mas nascidos e criados no Líbano. Frutos de um casamento inter-religioso, considerado ilegal na Síria, os irmãos Mamo viviam em um limbo burocrático como parte da legião de 10 milhões de apátridas, segundo estimativas da ONU.

    São indivíduos que não têm nacionalidade por não serem reconhecidos como cidadãos por nenhum Estado. "Não ter documentos é não existir", diz a jovem de 29 anos.

    Com visto de residente no Brasil, Maha ganhou CPF e carteira de trabalho, virou ativista e já percorreu cinco países como símbolo da campanha "I Belong" (Eu Pertenço).

    A refugiada aguarda a entrada em vigor da nova Lei de Imigração, em novembro, que abrirá a possibilidade de ela se naturalizar brasileira.

    "Eu amo o Brasil, o país que nos acolheu", diz ela, apesar do preço alto que pagou com a morte do irmão caçula, assassinado em uma tentativa de assalto em Belo Horizonte no ano passado.

    A seguir, leio o depoimento à Folha da jovem que personifica a luta dos apátridas ao redor do mundo.

    O QUE É APÁTRIDA

    "Você sabe o que é apátrida? É uma pessoa que não tem pátria, não tem nacionalidade, não é reconhecida como cidadã por nenhum Estado.

    Eu nasci no Líbano, país que só reconhece como nacional aqueles nascidos de pais libaneses. Meus pais são sírios e fugiram para Beirute, quando decidiram se casar.

    Como minha mãe é muçulmana e o meu pai é cristão, o casamento deles é considerado ilegal na Síria, que por esta razão nunca nos deu uma certidão de nascimento nem passaporte.

    Eu e meus dois irmãos crescemos sem ter documentos. Para muitos, documentação é só burocracia. Para nós, no dia a dia, significa não existir. Sem documento não se consegue trabalhar, estudar, viajar, casar, nada.

    Ser apátrida é não poder ser atendida em um hospital, é ter negada a sua matrícula em uma universidade, é ser impedida de entrar numa discoteca para dançar com seus amigos por não ter um RG.

    Meu primeiro documento oficial foi um passaporte provisório, de cor marrom, emitido pela Embaixada do Brasil em Beirute, que me permitiu entrar no país como refugiada em 19 de setembro 2014.

    Como eu e meus irmãos sabíamos que no Líbano não havia nenhuma esperança de resolver o nosso caso, começamos a procurar outros países que pudessem nos dar nacionalidade ou visto.

    EMBAIXADAS NA MIRA

    A gente queria tentar uma outra vida em outro lugar. Escrevemos a nossa história e mandamos para todas as embaixadas que existiam no Líbano.

    Muitas diziam que queriam nos ajudar, mas as repostas foram negativas. A do Canadá, por exemplo, respondeu: 'Onde vou colocar o visto? Vocês não têm passaporte'.

    O único país que nos acolheu foi o Brasil, que nos disse 'bem-vindos' como descendentes de sírios que somos, embora a própria Síria não nos reconheça como tal.

    Aqui, temos status de refugiados e um visto de residente por cinco anos, o que nos permitiu tirar carteira de trabalho e CPF. Documentos que nos permitem existir dentro desse território tão maior que o Líbano.

    VIOLÊNCIA E IMPUNIDADE

    O preço dessa mudança foi um pouco alto. Deixei tudo no Líbano: pai, mãe amigos, uma vida.

    Mas o pior foi perder meu irmão caçula, Eddy, assassinado aos 26 anos, em 30 de junho de 2016, numa tentativa de assalto em Belo Horizonte.

    Os três assaltantes são menores, chegaram a ser detidos, pois foram identificados pela menina que estava no carro com o meu irmão, mas não deu em nada.

    Belo Horizonte foi também a cidade que nos acolheu. A gente não conhecia ninguém lá, mas fomos acolhidos por uma família mineira católica que tinha hospedado libaneses durante a Jornada Mundial da Juventude.

    Conhecemos os Fagundes pelo Facebook. Moramos com eles por uns três anos. Há um mês, eu e minha irmã, Souad, 31, que é engenheira de telecomunicação, alugamos um apartamento.

    Estamos tentando revalidar nossos diplomas no Brasil agora. Minha mãe colocou a gente na escola com dificuldade. Eu sonhava fazer Medicina, mas não fui aceita na universidade na hora da matrícula. Acabei me formando em administração e computação, mas só tenho um certificado em um papel A4.

    Depois de formada, fiz duas entrevistas de trabalho numa multinacional em Beirute. Na hora de ser contratada, era sempre a mesma coisa: 'A gente quer você, mas cadê seu documento?'. Não conseguia emprego.

    Antes de chegar ao Brasil, eu era uma sombra, não existia, não podia sonhar, não tinha esperança. Depois de ter um documento brasileiro com minha foto e meu nome, até dirijo. É uma vida nova. Mesmo com o que aconteceu ao meu irmão, não penso em ir embora.

    Como falo quatro línguas [árabe, inglês, francês e armênio], trabalhei um ano e cinco meses como gerente de comércio exterior em uma fazenda em Ibitinga, no interior de São Paulo.

    PASSAPORTE AMARELO

    Eu julho, eu viajei para Dubai com o meu chefe para fazer uma reunião com clientes dos Emirados Árabes, mas não consegui entrar.

    Quando viajo para o exterior, uso um documento especial, o passaporte brasileiro para estrangeiros. É amarelo, ninguém conhece, nem a polícia daqui. Imagina lá fora.

    Passo três, quatro horas até descobrirem que é verdadeiro. Sempre questionam o fato de o passaporte brasileiro ser azul. Desta vez, fiquei 48 horas no aeroporto, mesmo já tendo entrado duas outras vezes em Dubai a trabalho com o mesmo passaporte.

    Infelizmente, esse problema acabou inviabilizando o meu trabalho. Acabei de perder o emprego e voltei a morar em Belo Horizonte.

    Desde que tinha 16 anos, sempre tentamos resolver nossa situação. Conversamos com presidente, ministros, ninguém conseguiu ajudar. Meu irmão morreu apátrida.

    Até 2014, eu pensava que nós éramos os únicos. Foi quando descobri a campanha do Acnur [Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiado], da ONU, "I Belong" (Eu Pertenço), que defende os direitos de 10 milhões de pessoas que estão na mesma situação que nós.

    Assim como eu, eles também querem existir. Eu pertenço a este mundo. A convite da ONU fui para Curaçao, Turquia, Equador, Trinidad e Tobago e para Genebra para fazer palestras. O objetivo é sensibilizar governos para a nossa situação.

    A nova lei brasileira de imigração, que já foi aprovada pelo Congresso Nacional, deve entrar em vigor em novembro. Tem um capítulo sobre apátridas, que espero tenha mecanismos para resolver nossa situação.

    Eu quero ser cidadã brasileira. O Brasil me deu existência. Eu amo este país e tenho orgulho de representá-lo lá fora."

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    por Eliane Trindade

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    É editora do Prêmio Empreendedor Social. Aqui, mostra personagens e fatos dos dois extremos da pirâmide social. Escreve às terças, a cada duas semanas.

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