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    Reinaldo Azevedo

    Dilma, ignorância e espanto

    19/09/2014 02h00

    Ao combater Marina Silva com truculência, Dilma Rousseff mexe com forças cujo poder ignora. Consta que, na juventude, a presidente-candidata foi professora de marxismo. Huuummm...

    Dada a sua inclinação para anacolutos, imagino que a tarefa dos alunos não fosse fácil. Até porque há dois Marx, né? O de "O 18 de Brumário" e "A Ideologia Alemã", por exemplo, é brilhante, goste-se ou não do que lá vai. O de "O Capital", ao qual Dilma se dedicava, é intragável e, já conversei com especialistas, às vezes, não faz sentido nem em alemão. Imagino o bruto traduzido para o português e depois filtrado pelo "dilmês castiço". É bem possível que a luta armada só tenha sido tentada no Brasil por erro de tradução e de leitura.

    O povo que aparece nos manuais de esquerda é o inventado pela taxidermia socialista. Não tem vísceras nem alma, só palha. Faltar-lhe-ia um conteúdo, a ser preenchido pelas utopias redentoras. É destituído de verdade e de história.

    Sua consciência possível, segundo essa visão, é a de classe, que lhe seria fornecida pelas vanguardas revolucionárias. A alternativa é a falsa consciência.

    O que vai acima é uma caricatura realista de um partido socialista à moda antiga, como o PSTU, o PCO ou mesmo o PSOL, esses pterodáctilos que voejam na bondade do Fundo Partidário do "Estado burguês" que querem destruir. Lixo. O PT é outra coisa, bem mais pragmática, mas conserva a visão autoritária do que seja o povo.

    Lula só representou um sopro de renovação nas esquerdas porque trazia um pouco de verdade à luta política. À época, eu tinha 16 anos e era da Convergência Socialista (origem do PSTU). Malhávamos sem dó aquele sindicalista porque o considerávamos reformista, despolitizado, cooptável, não revolucionário.

    Eu endossava a crítica, mas... O que me incomodava um pouco é que ele lembrava meu pai, um operário. Os meus amigos socialistas da época, a exemplo de Dilma, nunca tinham visto o povo de perto.

    Marina pertence à Família Silva, uma força política inventada por Lula. Ela não respondeu à pregação terrorista do PT sobre a suposta extinção do Bolsa Família com uma simples negativa. Foi buscar na memória o tempo em que os pais dividiam com uma penca de filhos um ovo, um pouco de farinha e algumas lascas de cebola. Quase chorou.

    Pobreza pregressa não é categoria de pensamento nem fonte legitimadora de convicções e utopias. Mas, se o PT não quiser cometer um erro brutal (do seu ponto de vista; do meu, resta o divertimento), convém Dilma não se comportar como a expressão de uma elite insensível (outra criação de Lula), que reage com truculência quando o povo –Marina!– acorda e fala.

    A procuradora de um ente de razão chamado "PT", onde o povo está empalhado, é, sem dúvida, Dilma. Mas a herdeira do Lula da Silva, com vísceras e história, que não cabe nos manuais esquerdopatas, é Marina Silva. O PT não tem como apagar da história de sua adversária o ovo, a farinha e as lascas de cebola. Marina sabe ser Lula. Mas Dilma só sabe ser Dilma.

    É grande a chance de Marina segurar a cabeça de Dilma com a férrea placidez com que Davi exibe a de Golias num quadro de Caravaggio. No rosto do morto, um misto muito humano de ignorância e espanto.

    @reinaldozevedo

    reinaldo azevedo

    Jornalista, é colunista da Folha e autor de um blog na RedeTV!. Escreveu, entre outros livros, 'Contra o Consenso' e 'O País dos Petralhas' e 'Máximas de um País Mínimo'.
    Escreve às sextas-feiras.

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