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    Reinaldo Azevedo

    A caça aos tarados não pode ser a medida da civilização

    21/04/2017 02h00

    jose lucena/Folhapress
    RIO DE JANEIRO,RJ,12.04.2017:RECONSTITUIÇÃO-MORTE-MARIA-EDUARDA - A Divisão de Homícídios da Polícia Civil realiza a reconstituição da morte da estudante Maria Eduarda, de 13 anos, na Escola Municipal Jornalista Daniel Piza, em Acari, Zona Norte do Rio de Janeiro (RJ), nesta quarta-feira (12). Maria Eduarda foi baleada no local quando participava de uma aula de educação física no dia 30 de março. Na ocasião, PMs trocaram tiros com traficantes nos arredores da escola. (Foto: jose lucena/Futura Press/Folhapress) *** PARCEIRO FOLHAPRESS - FOTO COM CUSTO EXTRA E CRÉDITOS OBRIGATÓRIOS ***
    Polícia Civil do Rio realiza perícia em escola onde estudante foi assassinada.

    O juiz Alexandre Abrahão Dias Teixeira, do 3º Tribunal do Júri do Rio, mandou soltar dois policiais que estavam em prisão preventiva, suspeitos de executar, no dia 31 de março, dois bandidos quando já estavam estendidos no chão, feridos. Há um vídeo com a cena do horror.

    No tiroteio, em frente à escola Jornalista Daniel Piza, morreu a estudante Maria Eduarda Alves da Conceição, de 13 anos. Em seu corpo, cinco perfurações. Uma delas provocada por arma compatível com a dos policiais. Uma tragédia brasileira.

    Dias Teixeira atendeu a parecer favorável à suspensão da prisão preventiva, emitido pelo Ministério Público Estadual. A promotora Carmen Eliza Bastos de Carvalho argumentou que os PMs não se enquadravam nos requisitos do Artigo 312 do Código de Processo Penal. E também se ancorou no 314.

    Parecer e decisão não são absurdos. Se há um fiapo de incerteza sobre a reação legítima (Art. 314) e se não há evidências de que os acusados estejam prestes a cometer novos crimes, de que possam pôr em risco a instrução criminal ou impedir o cumprimento da lei penal (Art. 312), não há por que manter a preventiva.

    O alarido da extrema-direita era grande. Os habitantes da "Bolsonarolândia" saíram em defesa de uma arma na mão e ideias torpes na cabeça. Nas redes sociais, passaram a defender execuções sumárias. Em relação a esses tipos, não resta outra coisa senão a sentença fatalista: o cheiro de presunto lhes assanha a fome de barbárie.

    A esquerda entrou na competição para ver quem escoiceava mais o bom senso. Cronistas sempre piedosos nem se apressaram em saber se parecer e decisão eram procedentes. Cabe lembrar, ademais, que não é a fealdade de um crime que define a necessidade ou não da preventiva. Isso fica para o julgamento.

    Detestáveis, aí sim, foram as considerações do juiz Dias Teixeira. O doutor escreveu ter passado "muitas horas meditando"... Sobre o quê? Ele responde: "especialmente [sobre] a voz das ruas" – leiam-se: redes sociais, essas ruas virtuais que exalam o fedor do bueiro do capeta.

    E aí ele apela a um clichê em favor da justiça do alarido: "As relações sociais mudaram, e a magistratura precisa mudar também. O juiz moderno não pode mais ser aquela figura da 'torre de marfim', especialista em temas do Direito, mas insensível ao que acontece fora de seu gabinete".

    Quando um homem da lei chama o aparato legal e institucional de "torre de marfim", estejam certos: estamos todos em perigo. Ele avança: "A sociedade, estou consciente, está desestruturada pela guerra assimétrica enfrentada nesta ex-cidade maravilhosa. O cidadão, no final, pretende tão somente viver em paz e merece pelos altos preços que paga em todos os sentidos." Não entendi. Execuções sumárias, por acaso, resgatam a "simetria"?

    Há eventos que, na sua banalidade literalmente crua, advertem-nos de que uma nova era pode estar sendo inaugurada. E nem sempre se anda para a frente.

    Quando um juiz tenta impor a um ex-presidente da República uma disciplina ao arrepio da lei; quando membros do MPF abusam de sua autoridade e gravam um vídeo incitando a população a lutar contra "os políticos"; quando um juiz prefere "a voz das ruas" à razão técnica – ainda que ambas conduzissem ao mesmo desfecho –, tem-se um encontro marcado com o abismo caso não se mude o caminho.

    Em entrevista concedida ao jornalista Wagner Carelli, publicada pela gloriosa e extinta revista "BRAVO!", no fim dos anos 90, o cineasta Bernardo Bertolucci afirmou que o "fascismo começa caçando tarados"

    Não é que ele gostasse de tarados. É que a caça aos ditos-cujos não pode ser a medida da civilização. Não para um liberal, democrata e direitista, como sou.

    reinaldo azevedo

    Jornalista, é colunista da Folha e autor de um blog na RedeTV!. Escreveu, entre outros livros, 'Contra o Consenso' e 'O País dos Petralhas' e 'Máximas de um País Mínimo'.
    Escreve às sextas-feiras.

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