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    Reinaldo José Lopes

    Ensine a seu filho que ele é macaco

    15/03/2015 01h45

    Reproduzo abaixo, com o máximo de precisão jornalística possível, um diálogo que aconteceu aqui em casa alguns meses atrás.

    - Papai, eu queria voar. Por que a gente não pode voar?

    - Porque a gente é bicho de chão, não do ar, filho.

    - Ué, a gente é bicho?

    - É, a gente é bicho. A gente é um tipo de macaco.

    Senti alguma incredulidade tanto na primeira reação à ideia de que pessoas também eram animais "" o "ué" não me deixa mentir "" quanto no silêncio que se seguiu à afirmação de que éramos primatas.

    Nada muito grave, porém. Miguel, 5, continuou a assistir aos seus desenhos animados e não ficou nem mais nem menos educado ou rebelde ao ser confrontado com a verdade sobre sua origem biológica. O que me leva aonde eu quero chegar com esta coluna: é perfeitamente possível, e até salutar, ensinar ao seu filho que ele é um macaco, gentil leitor.

    E não digo isso por achar que explicações mais tradicionais sobre a natureza humana tenham de ir para a lata do lixo –meu filhote de chimpanzé loiro também é regularmente instruído a agradecer ao Papai do Céu e pedir a proteção do anjinho antes de dormir (naquela oração que é a preferida de onze entre dez avós católicas e que começa com "Santo Anjo do Senhor/Meu zeloso guardador...").

    A questão, antes de mais nada, é que nosso parentesco estreito com quadrúpedes peludos da floresta equatorial africana é um fato tão certo quanto a existência da gravidade. É melhor começar a lidar com ele o quanto antes, portanto. E as implicações que esse fato traz –inclusive as espirituais, ouso dizer, só para voltar ao assunto do Santo Anjo– são mais positivas do que a possível repugnância inicial de se descobrir macaco deixa entrever.

    (Antes de prosseguir: é claro que eu sei que não descendemos de nenhuma espécie de símio moderno –apenas compartilhamos ancestrais comuns com eles. E "macaco" não é um termo preciso do ponto de vista evolutivo. Mas não vejo outra palavra da língua portuguesa que poderia ser usada para designar esses ancestrais, ou todos os bichos que vieram depois.)

    Esqueça os exemplares frequentemente patéticos de chimpanzés ou macacos-pregos à mostra em zoológicos de cidade pequena, arrancando os próprios pelos ou atirando fezes no respeitável público. Quando têm a chance de viver com alguma dignidade, em seu ambiente natural ou num cativeiro minimamente decente, nossos vizinhos de ramo na Árvore da Vida são criaturas fantásticas, que combinam o nobre e o torpe em proporções assustadoramente semelhantes às nossas.

    As últimas décadas de pesquisa primatológica, por exemplo, deixam claro que as tradições culturais –ou seja, a capacidade de transmitir informações de uma mente a outra de geração em geração, um triunfo antes considerado exclusivamente humano– estão por toda parte no mundo símio. E o mesmo vale para rudimentos da noção do certo e do errado, do justo e do injusto, ainda que aos bichos falte a linguagem necessária para articular essas ideias.

    Do ponto de vista humano, porém, a maior dádiva que os primatas nos trazem é a de simplesmente existirem. Esqueça o velho papo sobre a solidão cósmica da humanidade e olhe ao redor. Eles são a prova viva e hirsuta de que não estamos sozinhos e nunca estivemos.

    Reinaldo José Lopes

    É jornalista de ciência com graduação, mestrado e doutorado pela USP. É autor do blog "Darwin e Deus" e do livro "Os 11 Maiores Mistérios do Universo". Escreve aos domingos, a cada 2 semanas.

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