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    Reinaldo José Lopes

    #somostodostransgenicos

    10/05/2015 02h18

    Imagino que a experiência de dar uma volta no quarteirão com uma etiqueta colada na testa dizendo "Atenção: produto transgênico" seria suficiente para garantir um rápido encaminhamento para o psiquiatra mais próximo. O que é realmente maluco, no entanto, é que a pessoa assim etiquetada não estaria proclamando nada mais que a verdade.

    Ao que parece, somos todos transgênicos - nós, Homo sapiens, várias outras espécies de primatas e uma grande variedade de espécies animais. Com "transgênico" quero dizer, obviamente, um organismo que carrega no DNA de suas células material genético derivado de outras espécies, muitas delas tão distantes dele quanto um sagui é distinto de uma ameba.

    Essa é a conclusão de um dos estudos mais abrangentes já feitos sobre o tema, publicado recentemente na revista científica "Genome Biology" por Alastair Crisp e seus colegas da Universidade de Cambridge, no Reino Unido. Em todas as 40 espécies de animais que eles estudaram (uma lista que inclui diversos primatas, vermes e moscas-das-frutas, entre outras criaturas), há sempre entre várias dezenas e quase duas centenas de genes ativos derivados de seres vivos que não são animais - principalmente bactérias, protistas (micróbios complexos, como as amebas) e fungos.

    O processo pelo qual certos genes conseguem saltar a barreira entre espécies é designado pela sigla HGT (transferência horizontal de genes, em inglês). Muitos micro-organismos, em especial as bactérias, são praticantes ávidos desse tipo primitivo de promiscuidade, que as ajuda a obter genes ligados à resistência a antibióticos, por exemplo.

    Até hoje, porém, não estava clara a frequência desse processo no caso de organismos mais complexos. Crisp e companhia fizeram comparações detalhadas entre os genes ativos das dezenas de animais e os de membros de outros grupos de seres vivos, criando um índice de semelhança das sequências de "letras" químicas do DNA que os ajudou a flagrar os muitos casos de HGT. Ao que parece, as transferências envolvem principalmente genes importantes para o metabolismo, ajudando seus novos donos a montar e desmontar moléculas orgânicas com mais eficiência.

    Apresso-me a acrescentar, antes que alguém interprete do jeito errado o "hashtag" que usei como título desta coluna, que esses dados não dizem muita coisa sobre a segurança ou a utilidade dos transgênicos produzidos em laboratório pela mão humana. Não é porque o ancestral comum dos vertebrados conseguiu incorporar ao seu DNA o material genético de certos fungos que um plano para alterar a cor dos olhos de um bebê humano com os genes de um cogumelo que brilha no escuro (digamos) seria automaticamente uma boa ideia.

    É bem possível que essas e outras aplicações teóricas da biotecnologia não passem de ideias de jerico, mas o ponto central aqui é que elas provavelmente terão de ser sempre avaliadas caso a caso, com as devidas salvaguardas, mas também sem o temor algo supersticioso de que estamos cometendo uma transgressão cósmica ao inserir genes de uma espécie em outra.

    O que milhões de anos de promiscuidade genômica interespécies parecem indicar, no entanto, é que nem todo tipo de transferência horizontal é aprovada pelo severo júri da seleção natural. Afinal, de 20 e poucos mil genes humanos, no máximo algumas centenas foram legadas a nós por esse método pouco ortodoxo. Convém entender melhor esses critérios.

    Reinaldo José Lopes

    É jornalista de ciência com graduação, mestrado e doutorado pela USP. É autor do blog "Darwin e Deus" e do livro "Os 11 Maiores Mistérios do Universo". Escreve aos domingos, a cada 2 semanas.

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