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    Reinaldo José Lopes

    Na lata de lixo da (pré-)história

    16/08/2015 01h45

    Ninguém nunca perdeu ao apostar no descaso coletivo dos brasileiros com o próprio passado. Quando o passado em questão é pré-histórico, então, esse desleixo se torna positivamente patológico, conforme demonstram dois casos recentes.

    Como relatei em reportagem nesta Folha, um fóssil espetacular da chapada do Araripe, no Ceará, descrito nas páginas da revista "Science", pode reescrever a história evolutiva das serpentes. Tudo indica que se trata de uma cobra com quatro patas da era dos dinossauros. Lindo, se não fosse pelo detalhe de que o esqueleto quase certamente deixou o país ilegalmente, e pelo tom desafiador empregado pelos paleontólogos estrangeiros que o estudaram.

    "Fico feliz em dar minha opinião sobre as leis ridículas do Brasil sobre fósseis, que são ruins para a ciência e parecem xenófobas", disse-me Dave Martill, da Universidade de Portsmouth (Reino Unido).

    Acontece que serpentes quadrúpedes, dinossauros e outros tesouros pré-históricos são, de acordo com a legislação vigente, bens da União. Não podem ser vendidos ou exportados. A lei, contudo, quase nunca é cumprida, e Martill aproveitou para vociferar contra o que vê como hipocrisia: os fósseis não são vendidos às claras, mas ninguém impede que as mineradoras do Ceará os pulverizem para evitar problemas com a (bissexta) fiscalização, acusou ele.

    Se no Araripe peca-se por omissão, o governo do Rio Grande do Sul tomou ativamente a decisão de colocar em risco um pedaço insubstituível da história evolutiva do Brasil.

    É difícil interpretar de outro jeito o projeto de extinguir a Fundação Zoobotânica gaúcha e demitir todos os funcionários, encaminhada neste mês à Assembleia Legislativa do Estado. A justificativa citada pelo Executivo gaúcho é curta e grossa: corte de gastos –nenhuma consideração científica entrou na equação.

    Ao longo de mais de 40 anos de existência, a fundação geriu um dos melhores jardins botânicos do país e um museu de ciências naturais com cerca de 400 mil espécimes de animais e plantas em seu acervo. Além disso, e aqui o paralelo com o Araripe é claro, a Fundação Zoobotânica é o único órgão responsável por realizar laudos paleontológicos durante processos de licenciamento ambiental no Rio Grande do Sul.

    Não é por acaso, portanto, que pesquisadores do órgão, como o paleontólogo Jorge Ferigollo, tenham tido um papel-chave na tarefa de desvendar a movimentada pré-história do extremo sul do Brasil. O que eles descobriram até aqui é fascinante, embora ainda pouco conhecido: as rochas do Estado guardam pistas sobre os primeiros momentos do reinado dos dinossauros no planeta, e sobre a origem dos mamíferos, que ocorreram no período Triássico, há mais de 200 milhões de anos. Em outras palavras, quem deseja entender a ascensão dos avós do T. rex ou as raízes profundas da espécie humana deve muito a esses cientistas.

    Na conversa sarcástica que teve comigo, Martill sugeriu que a população pobre do Araripe deveria ganhar alguns trocados vendendo os fósseis de sua terra (imagino que ele recomendaria a mesma coisa aos demitidos da Fundação Zoobotânica, caso ela feche mesmo as portas). E se, em vez disso, todo moleque brasileiro (e gringo) louco por dinossauros fizesse do Rio Grande do Sul e do Ceará as suas mecas? E se isso gerasse turismo e renda em níveis decentes, ainda que não numa escala "Jurassic Park"? Sonhar não custa nada.

    Reinaldo José Lopes

    É jornalista de ciência com graduação, mestrado e doutorado pela USP. É autor do blog "Darwin e Deus" e do livro "Os 11 Maiores Mistérios do Universo". Escreve aos domingos, a cada 2 semanas.

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