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    Reinaldo José Lopes

    Espectros de Alexandria

    30/08/2015 02h00

    Aparentemente existe uma cláusula contratual tácita, nunca colocada diretamente no papel mas eternamente presente, feito um espectro inquieto, que obriga todo santo documentário sobre história da ciência a prantear a perda da biblioteca de Alexandria.

    Repare: o clássico "Cosmos", série apresentada pelo saudoso astrônomo americano Carl Sagan (1934-1996) nos anos 1980, chora a destruição do lugar. No ano passado, um discípulo e conterrâneo de Sagan, o astrofísico Neil deGrasse Tyson, apresentou uma nova versão de "Cosmos" na qual ele teve o prazer de passear pelos corredores (digitalmente ressuscitados) daquele templo do saber do Egito ptolomaico.

    Em geral, as menções à biblioteca costumam vir acompanhadas de condenações indignadas do fanatismo religioso que teria levado ao incêndio da instituição, logo depois que o cristianismo foi declarado a religião oficial do Império Romano no fim do século 4º d.C. A história, de fato, é um exemplo emblemático das amarras impostas pelo obscurantismo à investigação intelectual.

    Ou melhor, seria, se não fosse tão dúbia. A verdade é que ninguém tem certeza de quando e como a biblioteca foi destruída –e nenhuma fonte antiga atribui diretamente a queima à ascensão da Igreja cristã.

    Não há certeza absoluta sobre as origens da instituição, embora suas atividades provavelmente tenham começado algum tempo depois do ano 300 a.C. Criada pelos Ptolomeus, nobres de origem macedônica que se autoproclamaram faraós após a morte de Alexandre, o Grande, a biblioteca ganhou fama por promover uma empolgada caça a manuscritos valiosos Mediterrâneo afora –há quem diga que centenas de milhares de livros tenham chegado a ser armazenados nela em seu auge.

    Acontece que relatos antigos sobre a perda do acervo monumental falam de um primeiro grande incêndio já na época de Júlio César (nos anos 40 a.C. –antes de existirem cristãos, lógico). É o que diz, por exemplo, o grego Plutarco, do século 1º d.C., em sua biografia de César, segundo a qual uma batalha teria levado a biblioteca a pegar fogo acidentalmente.

    Alguns autores posteriores a essa data falam da Grande Biblioteca como se ela ainda estivesse ativa, mas uma nova guerra quase 300 anos mais tarde, desta vez entre o imperador romano Aureliano (que reinou entre 270 e 275 d.C.) e Zenóbia, rainha de Palmira, na Síria, teria causado muitos danos à área onde ficava a biblioteca, talvez acabando de vez com os veneráveis rolos de papiro.

    É possível, embora não seja certo, que uma pequena parte dessa riqueza tenha ido parar no Serapeum, um templo pagão de Alexandria. Junto com os outros templos não cristãos, o Serapeum foi destruído por ordem do bispo Teófilo em 391. Nenhum texto da época, porém, fala em livros queimados junto com os apetrechos pagãos. Pelo visto, em vez de ser obliterada num ato de fúria fanática, a Grande Biblioteca foi se esvaindo devagarzinho, por descuido e azar.

    Em tempo: cronistas cristãos do Oriente Médio também tentaram, por sua vez, jogar a culpa pelo fim da biblioteca alexandrina nas costas dos muçulmanos. Ao conquistar o Egito em 642 d.C., um general islâmico teria dito: "Ou os livros confirmam o Corão e, portanto, são inúteis, ou o contradizem e, portanto, devem ser destruídos". Ao que tudo indica, nada disso aconteceu –a história só aparece em textos escritos uns 500 anos depois do suposto fato.

    Reinaldo José Lopes

    É jornalista de ciência com graduação, mestrado e doutorado pela USP. É autor do blog "Darwin e Deus" e do livro "Os 11 Maiores Mistérios do Universo". Escreve aos domingos, a cada 2 semanas.

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