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    Reinaldo José Lopes

    Que m&% de transplante!

    27/09/2015 02h00

    Tem muita gente louca no mundo, como decerto já é de conhecimento do nobre leitor, mas desconfio que poucos parecem mais desvairados, à primeira vista, do que a florescente comunidade das pessoas que defendem o transplante fecal na modalidade faça-você-mesmo e divulgam a prática no YouTube. Refiro-me à gente que não só tem coragem de enfiar as fezes de outrem no próprio reto como posta vídeos sobre o procedimento na internet.

    Por mais calafrios que a ideia provoque nos estômagos (ou nos cólons) mais sensíveis, porém, os transplantes são assunto sério. Já há bancos públicos de fezes para doação nos Estados Unidos, como o OpenBiome, do MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts), e dois de seus fundadores, o microbiólogo Mark Smith e o professor de bioengenharia Eric Alm, publicaram uma defesa apaixonada dos estudos sobre o tema na "Nature", uma das mais importantes revistas científicas do mundo.

    A questão é que, fator "eca!" à parte, a chamada bacterioterapia fecal simplesmente funciona. Diversos testes clínicos indicam, para começo de conversa, taxas de sucesso em torno de 90% quando o transplante é feito para combater infecções persistentes com a bactéria Clostridium difficile, a qual, como o nome diz, e com o perdão da infâmia, realmente pode ser difícil de eliminar com antibióticos convencionais. Desde que o doador seja saudável, os riscos parecem ser pequenos.

    No fundo, o sucesso desse tipo de procedimento é um sintoma de como pesquisadores e médicos estão sendo forçados a re-examinar o papel dos micróbios no organismo humano. Em seu artigo na "Nature", Smith e Alm lembram que a microbiota, ou seja, o ecossistema de milhares de espécies de micro-organismos que habitam o corpo das pessoas como peixes e crustáceos habitam um recife de coral, pode ser considerada uma espécie de órgão virtual.

    Com efeito, embora normalmente só recordemos que tais bactérias existem quando estamos com a garganta inflamada e cheia de pus, a verdade é que em um humano há mais células bacterianas do que células de gente. As interações entre os habitantes desse micromundo impedem que eles saiam do controle e são essenciais para a correta absorção de nutrientes no intestino, por exemplo.

    Os antibióticos já salvaram incontáveis vidas humanas, mas o problema é a falta de seletividade com que eles dizimam esse microecossistema. Daí a vantagem dos transplantes: entre um quarto e metade do conteúdo sólido das fezes humanas são bactérias. Ao repovoar o trato intestinal com uma "semente" representativa da microbiota normal, as competidoras naturais da C. difficile retornam ao cenário e podem controlá-la.

    A questão é se é possível usar a bacterioterapia fecal para outros fins. Já há alguns resultados positivos para outros problemas do sistema digestivo, como colite ulcerativa, síndrome do intestino irritável e mesmo a simples constipação. Perspectivas mais intrigantes ainda dizem respeito a uma variedade de doenças inflamatórias e autoimunes, nas quais o organismo reage de forma intempestiva e danifica a si mesmo.

    Como a presença de uma comunidade saudável de micro-organismos ajuda, em tese, a calibrar direito as reações do sistema de defesa do corpo, o transplante fecal poderia ser útil até contra problemas como esclerose múltipla e diabetes. Por enquanto, porém, o clichê ainda vale: não tente fazer isso em casa.

    Reinaldo José Lopes

    É jornalista de ciência com graduação, mestrado e doutorado pela USP. É autor do blog "Darwin e Deus" e do livro "Os 11 Maiores Mistérios do Universo". Escreve aos domingos, a cada 2 semanas.

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