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    Reinaldo José Lopes

    Novos truques de velhos genes

    08/05/2016 02h30

    Dizem que cães velhinhos têm dificuldade de aprender truques novos, e há quem acredite que algo parecido vale para velhos genes – aqueles que acompanham linhagens de seres vivos há centenas de milhões de anos. Faltou combinar essa lógica aparentemente à prova de falha com o RNA, porém.

    Em síntese, é isso o que mostra um estudo assinado por um trio de pesquisadores brasileiros. Gustavo França, Maria Vibranovski e Pedro Galante, após um mergulho na história evolutiva do genoma dos vertebrados, verificaram que são justamente os genes velhos que hospedam com mais frequência as "receitas" para a fabricação de formas muito particulares de RNA, as quais regulam a maneira como esses genes são lidos pelo organismo – em outras palavras, produzindo novidade biológica a partir de uma matéria-prima "antiga".

    Antes de explorar melhor as implicações das descobertas do trio, relatadas em artigo na revista científica "Nature Communications", convém eliminar as ambiguidades do nosso pequeno dicionário de biologia molecular. Comecemos com o termo "gene": o sentido clássico da palavra se refere a uma sequência de "letras" químicas de DNA que contém o código para a produção de uma proteína, a qual, por sua vez, desempenhará toda sorte de funções nas células vivas.

    A coisa, porém, é bem mais complicada do que a definição acima deixa entrever, uma vez que os genes de criaturas como nós contêm éxons – os pedaços que efetivamente servirão como receita para uma proteína - e íntrons, aparentes "excessos de texto" que seriam cortados pela célula, como um editor que apaga parágrafos desnecessários de uma reportagem prolixa (íntrons, solidarizo-me com vocês).

    Só que os íntrons não são nem de longe tão inúteis assim, como explica Galante, biólogo computacional do Hospital Sírio-Libanês. Cerca de 90% dos chamados microRNAs são produzidos a partir dos códigos presentes nos íntrons – e os tais microRNAs têm se revelado engrenagens fundamentais do funcionamento celular.

    Eles "nascem" com um formato característico, que lembra um grampo de cabelo, e depois são retrabalhados por moléculas especiais até ficarem pequeninos, com apenas 20 e poucas letras de DNA (daí o apelido de "micro"). Colam-se, então, a uma sequência de RNA mensageiro (a que de fato conduz a produção de proteínas) e impedem sua atividade. Ou seja, na prática, podem controlar até que ponto determinado gene está ativo.

    O que Galante e seus colegas fizeram foi verificar em quais genes há uma frequência maior de "receitas" de microRNAs. Ficou claro que os genes mais antigos são o abrigo preferencial dos microRNAs ("antigos" porque são genes compartilhados entre o homem e os demais vertebrados cujo genoma já foi lido).

    Por que a evolução tenderia a produzir mais microRNAs precisamente nesses genes? Porque, por serem antigos e essenciais para as células, eles são ativados com frequência e em diversos órgãos - o que ajuda os microRNAs a "pegarem carona" quando tais genes são lidos pela célula. "Eles tanto controlam a expressão [ativação] dos genes quanto trazem novidades para esse processo - uma coisa não exclui a outra", diz Galante.

    O mais interessante é que o aparecimento de novos microRNAs em genes antigos se intensificou com a origem dos primatas, o nosso grupo de mamíferos - e em genes ligados ao desenvolvimento do cérebro. "Isso provavelmente não é por acaso", afirma o pesquisador. Ou seja, talvez devamos ao menos parte de nossa capacidade mental a algumas letrinhas de RNA.

    Reinaldo José Lopes

    É jornalista de ciência com graduação, mestrado e doutorado pela USP. É autor do blog "Darwin e Deus" e do livro "Os 11 Maiores Mistérios do Universo". Escreve aos domingos, a cada 2 semanas.

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