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    Reinaldo José Lopes

    Naturalismo medieval

    19/06/2016 02h07

    Toda vez que pego alguém dizendo coisas do tipo "nossa, que tortura medieval" ou "puxa, esse Congresso vai levar a gente de volta à Idade Média", preciso me segurar muito para não interpelar o sujeito: posso saber de qual Idade Média você está falando, mano?

    Lembre-se de que o período que convencionalmente chamamos de Idade Média engloba quase um milênio (de 476 d.C. a 1453). Muita coisa acontece em mil anos; o mundo não fica parado – inclusive o mundo medieval. Estamos falando da Idade Média do rei Arthur (que teria vivido, se é que viveu, lá pelo ano 500)? De Carlos Magno (ano 800)? Das Cruzadas (a partir de 1096) ou de Dom Henrique, o Navegador (nascido em 1394)?

    Se as pessoas tendem a enxergar todo esse imenso período como uma coisa só de maneira geral, a visão simplificadora fica ainda pior quando o assunto é a relação entre ciência e religião. Supõe-se que a Idade Média tenha sido o Reino Encantado do Literalismo Bíblico, quando as tentativas de explicar o Universo com base em leis naturais foram soterradas por uma leitura tacanha das Sagradas Escrituras – e, se o sujeito protestasse, fogueira nele e pronto.

    Trata-se, no entanto, de um preconceito que não resiste à primeira leitura de textos escritos por pensadores "medievais" (atenção para as aspas) – sujeitos como Teodorico (ou Thierry) de Chartres e Guilherme de Conches, que viveram na atual França durante a primeira metade do século 12.

    Ambos os filósofos escreveram (entre muitas outras coisas de sua vasta obra) comentários sobre os primeiros capítulos do livro do Gênesis, justamente os textos da Bíblia que mais motivam sessões de pancadaria verbal entre cristãos conservadores e defensores de uma visão científica do Universo hoje em dia. Estamos falando dos relatos tradicionais da Criação ("relatos", no plural, porque são duas narrativas distintas), desde o célebre "Faça-se a luz!" pronunciado por Deus até os momentos em que o Senhor molda Adão a partir do barro e, na sequência, usa a costela do primeiro homem para criar Eva.

    Deus aparece falando alguma coisa nos comentários dos filósofos, ou brincando de oleiro? Nem pensar. Falando sobre o "terceiro dia" da Criação segundo o Gênesis (que, aliás, ele não considera como um dia literal, de 24 horas), Teodorico de Chartres escreve: "Misturando-se o calor do ar que está no alto com a umidade da terra que tinha acabado de ficar descoberta pelo recuo das águas, aconteceu que a terra acolhesse em si mesma a potência de produzir ervas e árvores".

    Guilherme de Conches continua na mesma linha, analisando o relato da criação dos animais e do homem: "A terra, por si mesma, formou diversos gêneros de animais. Se em algum lugar era mais abundante o fogo, nasceram os animais coléricos, como o boi e o jumento; se, por outro lado, em certos lugares abundava mais a água, nasceram animais fleumáticos, como o porco; e, onde os elementos estavam presentes em igual quantidade, formou-se o corpo humano".

    "Elementos" aqui são os tradicionais da Antiguidade (terra, ar, fogo e água), como talvez você tenha reparado. É óbvio que, do ponto de vista da ciência moderna, as explicações dadas pela dupla para a origem dos seres vivos estão erradas. O importante, porém, é o cerne da perspectiva deles: um Cosmos no qual a diversidade que vemos ao nosso redor surge a partir de leis naturais estabelecidas, e não de uma constante intervenção divina. Os filósofos do século 12 achavam que Deus tinha estabelecido essas leis no princípio dos tempos; os de hoje não têm tanta certeza disso. Mas não dá para acusar os primeiros de serem toscos.

    Reinaldo José Lopes

    É jornalista de ciência com graduação, mestrado e doutorado pela USP. É autor do blog "Darwin e Deus" e do livro "Os 11 Maiores Mistérios do Universo". Escreve aos domingos, a cada 2 semanas.

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