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    Reinaldo José Lopes

    Desinventando a clonagem

    17/07/2016 02h00

    A mais recente coletânea de contos do escritor britânico Neil Gaiman, autor de best-sellers como "Deuses Americanos", inclui uma historieta simpática que se propõe a explicar por que as grandes invenções imaginadas pela ficção científica – carros voadores, teletransporte, viagens espaciais mais rápidas que a luz etc. – ainda não existem.

    É muito simples, diz Gaiman: existe um burocrata misterioso cuja única função é "desinventá-las", apagando qualquer rastro da existência delas. Nada me tira da cabeça que alguma coisa muito parecida com isso anda acontecendo com a clonagem.

    OK, estou exagerando um tantinho – afinal, foi no último dia 5 que celebramos os 20 anos de nascimento da ovelhinha escocesa Dolly, o primeiro clone viável de um mamífero.

    À época, as manchetes, ensaios filosóficos e invectivas apocalípticas sobre o ovino tomaram o mundo de assalto, mas o que impressiona hoje é como o bicho perdeu seu status de ícone cultural e, mais importante ainda, a virtual inexistência de terapias ou produtos que se baseiem diretamente na técnica que criou Dolly.

    É verdade que ninguém precisava de uma bola de cristal para prever que a aplicação da chamada clonagem reprodutiva a gestações humanas seria um beco sem saída, ao menos durante várias décadas.

    Nossa capacidade aparentemente instintiva de reconhecer que era preciso criar um tabu ético entrou em ação, emergiu espontaneamente o mandamento "Não clonarás uma pessoa" e, até onde sabemos, ele não foi violado – até porque não é trivial obter centenas ou mesmo milhares de óvulos humanos e submeter dezenas de mães de aluguel a uma gravidez de risco sem nenhuma garantia do nascimento de um bebê saudável. É o tipo de coisa que só nazistas de carteirinha ousariam tentar, e olhe lá.

    Por outro lado, houve quem criasse empresas de biotecnologia para clonar bichos de estimação falecidos, um atrativo inegável para donos saudosos e endinheirados, em especial nos EUA.

    O negócio ainda existe, mas continua sendo absurdamente caro – na faixa de dezenas de milhares de dólares – e, na prática, impreciso. Tanto os óvulos usados no processo quanto o ambiente uterino das cadelas ou gatas de aluguel influenciam a aparência e outras características dos cãezinhos e bichanos clonados.

    É bobagem esperar que um dia todos os bichos de estimação serão clones – e o mesmo vale para vacas ou porcos criados em fazendas. O estrago que uma epidemia seria capaz de causar numa fazenda de clones, com todos os bichos com suscetibilidade genética semelhante a um patógeno, é coisa de filme de terror.

    Restava ainda a chamada clonagem terapêutica – que envolve obter núcleos das células de alguém com determinada doença, inseri-las em óvulos doados e, a partir dessa junção, criar tecidos e órgãos sob medida para substituir os que estão danificados no organismo do doente.

    Além de problemas semelhantes de eficiência – ainda que menores do que os que envolvem o nascimento de um bebê saudável – e do dilema ético ligado à ideia de criar um embrião humano só para destruí-lo, a ideia foi atropelada pelo desenvolvimento da ciência.

    Descobriu-se como reprogramar células adultas para que elas retornem a um estado semelhante ao embrionário sem o gargalo da clonagem no meio do caminho, e é essa avenida que a imensa maioria dos pesquisadores têm explorado hoje. Tecnologias podem não ser "desinventáveis" – mas muitas vezes viram becos sem saída.

    Reinaldo José Lopes

    É jornalista de ciência com graduação, mestrado e doutorado pela USP. É autor do blog "Darwin e Deus" e do livro "Os 11 Maiores Mistérios do Universo". Escreve aos domingos, a cada 2 semanas.

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