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    Reinaldo José Lopes

    Estradas já fizeram 'picadinho' da maior parte das áreas naturais

    18/12/2016 02h00

    Pierre Ibisch/Science
    Lagarto-monitor atropelado em estrada em reserva natural da região de Sabah (ilha de Bornéu, Malásia)
    Lagarto-monitor atropelado em estrada em reserva natural da região de Sabah (ilha de Bornéu, Malásia)

    Numa época em que quase todo mundo carrega um GPS facílimo de operar no bolso ou na bolsa, imagens de satélite nunca foram tão banais. Dois toques na tela do celular são suficientes para que o sujeito consiga examinar uma representação mais ou menos realista e atualizada da Terra vista do espaço.

    Mesmo assim, uma forma inovadora de enxergar o nosso planeta, bolada por uma equipe internacional de cientistas, é capaz de deixar surpreso –e cabreiro– quem ainda tem um pouco de imaginação. O trabalho revela um globo retalhado por estradas, um "bolo planetário" cortado em 600 mil pedacinhos.

    Note, aliás, que essa estimativa do número de fatias separadas pela ação humana provavelmente é conservadora –ainda faltam dados a respeito de certas áreas, o que significa que o impacto global das estradas deve ser ainda maior. De qualquer jeito, se você achava que a Terra ainda está repleta de vastas áreas intocadas pela nossa espécie, pense de novo.

    A pesquisa, que acaba de sair na revista "Science", indica que mais da metade dos pedaços de chão não atravessados por estradas têm área de menos de 1 km², e 80% desses trechos medem menos de 5 km² de área. Grandes áreas contínuas (com mais de 100 km²), sem brechas abertas especificamente para o tráfego humano, são apenas 7% do total.

    E daí? Decerto uma estradinha passando nas vizinhanças não faz tão mal assim, faz? Muito pelo contrário, indica a literatura científica avaliada pela equipe do estudo, que inclui a brasileira Mariana Vale, do Departamento de Ecologia da UFRJ.

    Para calcular as fatias em que o planeta foi picado, Mariana e seus colegas utilizaram como critério uma distância de pelo menos 1 km da estrada mais próxima –isso porque distâncias iguais ou inferiores a 1 km estão ligadas a uma série de efeitos negativos das estradas sobre os ambientes naturais que cortam.

    Estradas são, é claro, vias de acesso para caçadores e gente munida de motosserras; trazem poluentes dos carros e caminhões para as matas e os rios; além de trazer gente, trazem espécies invasoras (não nativas da região) que muitas vezes deixam as criaturas nativas em maus lençóis. Considere ainda que estradas, em certo sentido, dão cria: a abertura de uma rodovia em regiões como a Amazônia quase inevitavelmente estimula a abertura de ramais secundários, dos quais nascem outras picadas, num processo que vai capilarizando a devastação.

    "Veja a situação da BR-319, a Manaus Porto-Velho", destaca Mariana. "Existe a eterna ameaça de pavimentá-la, apesar dos inúmeros artigos científicos demonstrando o desastre que isso representaria para a biodiversidade e para as populações indígenas. Ela basicamente leva o arco do desmatamento para o coração da Amazônia. Já tem linha de ônibus, mas a falta de pavimentação atrapalha o trânsito de veículos, sobretudo durante as chuvas."

    Sabe onde fica o maior pedaço de território natural não afetado por estradas em todo o planeta? Justamente a oeste da BR-319.

    Por essas e outras, abrir menos estradas em regiões ricas em biodiversidade talvez seja uma das mais baratas e eficazes estratégias de conservação. Querido governante: está com a mão coçando para investir em transporte? Crie uma nova linha de metrô em São Paulo, ou incentive o transporte fluvial na Amazônia, que é melhor para todo mundo.

    Reinaldo José Lopes

    É jornalista de ciência com graduação, mestrado e doutorado pela USP. É autor do blog "Darwin e Deus" e do livro "Os 11 Maiores Mistérios do Universo". Escreve aos domingos, a cada 2 semanas.

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