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    Ricardo Araújo Pereira

    Morrer é chato

    05/05/2017 02h24

    Luiza Pannunzio/Folhapress
    Ilustração Ricardo Araújo Pereira de 5.mai.2017

    É um poema de Roger McGough: "Todo o dia, / Eu penso sobre a morte. / Sobre doença, fome, / violência, terrorismo, guerra, / o fim do mundo. // Isso ajuda / a me distrair dos problemas." Tento fazer o mesmo exercício. Pensar na morte, sobretudo na minha, anima muito o meu dia.

    Tudo o que é bom acaba –e é provavelmente por isso que é bom, o que significa que a vida é melhor por causa da morte. Talvez se possa argumentar, no entanto, que, se a ideia da morte acaba por ser simpática, o ato de morrer traz alguns aborrecimentos. A existência cessa, e isso é inevitável. O que verdadeiramente me enfada é o fato de a morte ser meio brega. Todos os meus amigos sabem que, enquanto vivo, eu nunca me deitaria num leito de cetim com rendas. Mas é lá que vão me colocar, quando eu morrer. Estarei rodeado de uma circunspecção que sempre rejeitei em vida, e essa é a verdadeira derrota –uma que eu não merecia. Haverá silêncio, respeito, consideração. Que raiva. "Eu, solene? Nem morto", fui dizendo muitas vezes. E, afinal, serei obrigado a quebrar a promessa.

    Outro dia, um casal cruzou comigo na rua. De repente, o homem caiu: estava tendo um enfarte. A mulher puxava-lhe a roupa e gritava: "Não, Jorge! Não! Não faz isso comigo, Jorge!" A multidão condoeu-se com o desespero dela; eu, que não gosto que gritem comigo, simpatizei com ele.

    Meu principal talento é descortinar desumanidade em declarações aparentemente humanas. Por exemplo: quando, nos filmes, o bandido aponta uma arma e a vítima implora: "Por favor, não dispare. Eu tenho família". Todo mundo chora a sorte da vítima; eu deploro sua crueldade.

    O que aquelas palavras significam é: "Escuta, porque é que você não vai antes matar um órfão? Procure alguém que, por estar completamente sozinho no mundo, não possua um argumento atendível para evitar que você lhe dê um tiro." É bárbaro –tanto quanto repreender um moribundo por estar morrendo, como se ele estivesse nos ofendendo pessoalmente com sua caprichosa morte.

    Por isso, eu me aproximei do homem e contrapus: "Vai, Jorge. Se você quer ir, vai. Ela fica bem, Jorge. Talvez fique triste durante um mês, dois no máximo, mas depois o tempo cicatriza a ferida e ela volta a rir, quem sabe até casa de novo. Pode ir descansado, Jorge".Creio que fiz o meu dever. Pelo menos foi esse pensamento que me reconfortou, enquanto fugia da viúva e da multidão.

    ricardo araújo pereira

    É humorista português e um dos criadores do coletivo Gato Fedorento, referência humorística em seu país. Escreve aos domingos.

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